Antes do título do filme surgir brevemente na tela, um prólogo com lances escatológicos envolve um elefante, futura atração de uma festa “babilônica” na Hollywood dos anos 1920. Somando com a longuíssima cena da festa lá se vão quase 30 minutos de excessos - uma das características do mais recente filme de Demien Chazelle.
Os excessos já faziam parte do aprendizado de bateria em Whiplash: em busca da perfeição, filme que estabeleceu Chazelle como diretor de prestígio em 2014. Se esteve buscando a perfeição ao retratar os anos loucos na meca do cinema americano, sua prolixidade resultou, no máximo, em colcha de retalhos irregular, ainda que com alguns bons momentos isolados, quase diluídos nas elefantisíacas três horas e dez minutos da projeção.
Boa parte do que funciona bem em Babilônia se deve à cinematografia (sépia nas primeiras cenas, dourado em seguida etc) de Linus Sandgren, colaborador de Chazelle desde La La Land (quando Sandgren levou seu Oscar de fotografia), assim como à música inspirada (ainda que pudesse ser usada com mais parcimônia) de Justin Hurwitz, outro parceiro fixo do diretor que fez a trilha de todos os seus outros longas. Igualmente oscarizado (por Whiplash), Tom Cross faz o que pode na montagem do material aproveitado, mas é material demais para o roteiro bem menos inspirado do que pretendeu ser.
Aliás, sobre possível material deletado, fica a impressão de que muita coisa se foi na edição final, especialmente no que diz respeito a dois personagens: o músico Sidney Palmer (Jovan Adepo) e a cantora de cabaré dublê de criadora de intertítulos para filmes silenciosos Lady Fay Zhu (Li Jun Li). Não houvesse outros pelos quais o filme passa ainda mais superficialmente sem se deter como sugeria de início (o depressivo Munn, vivido por Lukas Haas), pareceria que o músico negro e a cantora de traços orientais estão lá só para cumprir cotas de suas etnias.
Mas o pior é que praticamente não há arco de personagem mesmo em relação àqueles sobre os quais o filme se detém especialmente: a Nellie Le Roy (Margot Robbie) e o Manny Torres (Diego Calva). Ela é o estereótipo da starlet que fará de tudo pelo sucesso e fama, clichê agravado pela “evolução” mais do que previsível para sua história; e ele é o faz-tudo que não faz questão de estar á frente das câmeras, mas atrás delas, no processo ensandecido de filmar ilusões que se assemelhem a alguma pseudo-realidade quando projetadas nas telas. Apenas o Jack Conrad de Brad Pitt tem um pouco mais de nuances que o ator aproveita nos mínimos detalhes em seu melhor desempenho até hoje. Calva, uma ótima surpresa, também ajuda bastante na composição de seu personagem e Robbie é o encanto de sempre e eficiente, apesar do material humano limitado da estrela-alpinista doidinha.
O deslumbramento de Manny Torres com a fábrica de sonhos hollywoodiana parece ser o mesmo de Chazelle com a Hollywood do passado: o ator de sucesso nos filmes mudos que não se mantém na passagem para o cinema sonoro vivido por Brad Pitt é bem calcado em John Gilbert – que as plateias de hoje nem devem saber quem foi, apesar de ter sido par habitual de Greta Garbo (e as plateias atuais ainda sabem quem foi Garbo?). Assim como Nellie Le Roy teria sido inspirada por Clara Bow (essa então: quem ainda sabe que foi a “it girl”, termo a partir do qual quem se dizia, no passado, quando alguma figura surgia interessante e original, que “ tinha ‘it’ ”). Manny acaba sugerindo ser mesmo o próprio Chazelle, já que é o único personagem sem referência a algum nome do cinema de um século atrás tomado como modelo.
Já dentre as passagens mais constrangedoras o destaque fica com o trecho em que Tobey Maguire (um dos produtores do filme) faz um mafioso mesclado com figuras bizarras dignas do filme Freaks, de 1932, não por acaso a época para onde Babilônia caminhou depois de ter começado em 1926. E a mão pesada de Chazelle também pode ser exemplificada quando um personagem mostra claramente seu desalento e tudo se encaminha para que o espectador suponha que ele possa se matar, sendo que Chazelle precisa mostrar o revólver antes da coisa se concluir - ou não - com a hipótese de suicídio.
Três horas e dez minutos com uma quase dezena de personagens esboçados sem conseguir formar um painel orgânico devido à maior atenção dada a três deles (o que não seria um problema em si), mas de modo desequilibrado em relação a alguns poucos trechos soltos dedicados a outros dois ou três estereótipos, restando apenas caricaturas para os demais.
Hollywood terá sido (e ainda é) uma fonte de tipos caricaturais e estereotipados para serem usados em ficções? Pode ser que sim, mas desde os cáusticos “Sunset Boulevard”/Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950) e “The Bad and the Beautiful”/Assim estava escrito (Vincente Minelli 1952) - ou até mesmo no ambiente algo idealizado de A Noite Americana (Truffaut, 1972) - o cinema já voltou sua câmera para o que se passa antes e fora das telas com resultados infinitamente mais satisfatórios. Bem, lembrar de Wilder ou Truffaut perto de Chazelle só pode piorar as coisas.
Também não faz sentido o porquê de - enquanto disfarça (e mal) as “inspirações” para tantos personagens ficcionais - preservar os nome reais para alguns tipos mais episódicos, como no caso de Marion Davies e William Hearst, ou nem tanto assim, como a presença de Irving Thalberg no rol de personagens. Neste caso, nada do que representou Thalberg é, ao menos, sugerido. Para quem não lembra, o produtor foi a fonte de inspiração do ‘Monroe Stahr’ de “Last Tycoon”, o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald sobre a Hollywood de então. Aliás, para Fitzgerald, Paris é que foi a Babilônia da “era do jazz” como ele deixou claro em seu belo conto “Babylon Revisited”. Vale a pena ler, há traduções. Por fim: é doideira de quem escreve ou nesta cena em que surgem Rothschilds, Hearst e outros nomes reais, duas figuras têm ou não têm a cara de Joan Crawford e de Bette Davis? Se têm, por que serem "citados" seus rostos em personagens que não são essas estrelas mais famosas?