Em Jogo de Cena, Eduardo Coutinho entrevista várias mulheres que aceitaram ser filmadas falando de si mesmas e de suas vidas, atendendo a um anúncio de jornal. Mas não só: sentadas em uma cadeira colocada no palco, de costas para a platéia vazia do Teatro Glauce Rocha no Centro do Rio de Janeiro, os depoimentos se sucedem, alternando uma grande maioria de rostos desconhecidos com os de atrizes brasileiras tão famosas como Marilia Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão que “representam” falas das desconhecidas, re-apresentam narrativas já vistas e ouvidas.
Enquanto a montagem mistura fragmentos de depoimentos reais com os trechos representados por atrizes, algumas mais - e outras menos - conhecidas, a entrega das intérpretes escolhidas para este verdadeiro “jogo” (‘da verdade’ ou ‘de cena’?) levanta questões sobre o artista “fingidor” que “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”: Andréa Beltrão, por exemplo, se emociona a partir de sua vivência pessoal sobre a vida e o relato da moça que lhe coube representar. Projetando-se na vida alheia, ela experimenta os fatos vividos pela outra, só que de outra forma e até mesmo com estranhamento. E fala sobre isso, “saindo” da “personagem” e dizendo algo sobre si própria.
Há uma oportunidade ímpar e muito original de se poder observar três estilos de interpretação bem diferentes: enquanto Andréa, conforme foi percebido e descrito acima, parece reviver intensamente o que sua “personagem” real teria vivido – mas em sua própria pele, ao seu modo, com outra experiência emocional -, Fernanda Torres faz uma opção mimética de identificação mais naturalista, digamos - e comenta alguma coisa neste sentido, sobre como é dar vida a uma personagem ficcional e como seria recriar uma pessoa viva cujo “modelo” real estaria acessível e, portanto, passível de comparação com a interpretação dada.
Já Marilia Pêra cria uma “outra” personagem bem diversa na forma do modelo “vivo” que lhe foi ofertado: é a mesma narrativa, mas com outro formato; é a mesma pessoa que também acabamos de ver/ouvir; mas agora é uma “personagem de Marilia Pêra”, com um certo “distanciamento” que atualiza a re-apresentação do que já foi visto antes, mas como que orquestrando um outro arranjo para a mesma melodia.
O quanto existe da “verdade” de cada atriz nos personagens que interpreta? Trata-se de “empatia” no sentido de se colocar no lugar de outrem que lhe seria até mesmo estranho (Freud)? Com tal “saída de si” conseguir compreensão sobre uma outra personalidade diferente: é isto que lhe permite recriar uma vida alheia? Ou a interpretação deve implicar igualdade ou grande semelhança com o modelo real? Ou pode ser diferente para ser mais parecida? Pode se dar como uma “traição” ao modelo que, entretanto, termina por ser fiel ao modelo? O ator traz o personagem para si ou se leva para o personagem? Qual o grau (ou tipo) de identificação eficiente? É tudo verdade? É tudo “mentira”?
O filme, editado de modo espertíssimo, se abre com o depoimento de uma moça simples que queria ser atriz e estaria realizando seu sonho desde que ingressou no Grupo "Nós no Morro". Como ainda não é bem conhecida - e mais adiante fica evidente que o filme "brinca" de misturar depoimentos espontâneos com encenações -, pode-se até pensar se se tratava de uma atriz interpretando uma moça que queria ser atriz (o que não deixaria de ser verdade neste caso; já em outros...).
Mais adiante, uma outra jovem se apresenta como aspirante a atriz. Era mesmo previsível que algumas pessoas que atenderam ao que foi anunciado em jornal tivessem pretensões nesta área. Não se esperaria encontrar pessoas tímidas ou reservadas dispostas a falar sobre suas vidas em um futuro filme a ser exibido. E as que foram selecionadas (entre oitenta e três que responderam ao chaamdo falam bastante - e falam intensamente: tragédias pessoais, mortes, perdas, separações, relacionamentos amorosos desfeitos, maternidades inesperadas em momentos inesperados e inoportunos, relações conturbadas com os pais, relações estremecidas com filhos, pecadilhos de se apossar de vidros de moedinhas da família, homossexualismo próprio ou de parceiros, enfim, a tal “vida como ela é”.
Mas quando se fala da própria vida ou de si mesmo, existe mesmo a tal vida (ou pessoa) como ela “é”? Para Lacan, toda verdade falada por alguém sempre tem estrutura de ficção. O que se deseja enunciar para outrem consegue ser a verdade interior de quem enuncia? O quanto o que se imagina que seja a expectativa do ouvinte vai interferir no relato de quem fala? Conseguimos ir além de nossas “personas” públicas?
Por outro lado, a tal “ficção” pode transmitir mais realidade do que um mero registro documental que ainda não tenha provocado um entendimento (ou uma “interpretação”). E o filme torna menos nítidas as fronteiras do que é documentário e do que é ficção ao mesclar os limites do que é “realidade” (pois as que não são atrizes profissionais não deixam de “representar” quando falam para a câmera e para um diretor de cinema) - e do que seria “desempenho teatral”, pois as atrizes acabam por colocar conceitos e idéias pessoais, comentam dificuldades e entregam “truques” - como o ‘cristal japonês’ que Marilia leva na bolsa, recurso para irritar a vista e provocar torrentes de lágrimas (caso Coutinho assim lhe pedisse).
Mas não é necessário nenhum cristal japonês: Jogo de Cena emociona pelo que tem de confissões verdadeiras que parecem dramas de ficção ou ficções que retratam verdades.
# JOGO DE CENA
Brasil, 2006
Direção: EDUARDO COUTINHO
Fotografia: JACQUES CHEUICHE
Montagem: JORDANA BERG
Elenco: ANDRÉA BELTRÃO, FERNANDA TORRES, MARILIA PERA, MARY SHEILA, GISELE ALVES MOURA, DÉBORA ALMEIDA, SARITA HOULI.
Duração: 103 minutos