Críticas


JOGO DE CENA

De: EDUARDO COUTINHO
Com: ANDRÉA BELTRÃO, FERNANDA TORRES, MARILIA PERA
09.11.2007
Por Daniel Schenker
JOGO DA VERDADE

Como detectar a diferença entre um depoimento e a interpretação de um depoimento? Em Jogo de Cena , Eduardo Coutinho borra essa fronteira, a ponto de o espectador não identificar se quem está na tela é a própria pessoa que viveu as experiências que narra ou um ator. A distinção torna-se clara quando rostos famosos aparecem. O objetivo talvez seja mostrar como os atores, ao se remeterem a associações pessoais, se apropriam de textos alheios. Mas o cineasta escalou, curiosamente, atrizes acostumadas a comentar as personagens que fazem (em especial, Marília Pêra) e não a “desaparecer” por trás delas.



Coutinho também não é um diretor que oculta o seu processo de trabalho. Ao contrário, revela determinadas etapas, como o pagamento dos entrevistados em Santo Forte e a decisão em assumir a presença da própria equipe de filmagem em Jogo de Cena , assim como as conversas com as atrizes sobre as dificuldades que enfrentaram. Em todas, prevalece uma busca pela verdade e o risco da empreitada é resumido por Fernanda Torres: “quando você lida com uma personagem real, a própria realidade esfrega na sua cara onde você poderia ter chegado e não chegou”.



As conversas revelam que o esforço em ser verdadeiro, em escapar das convenções da representação, leva as atrizes a caminhar de encontro – pelo menos, em certa medida – a um registro contido, econômico. Marília destaca a artificialidade da exibição emocional. “Quando o choro é verdadeiro, a pessoa tenta esconder e o ator hoje procura mostrar”, assinala diante de Eduardo Coutinho, que se “transforma” em ator ao repetir suas intervenções nas entrevistas que realizou sob a forma de contracena com as atrizes. Andréa Beltrão afirma ter buscado a serenidade de sua “personagem”. Ao que tudo indica, Andréa passou pela prova mais difícil porque Coutinho intercala o depoimento verídico de uma entrevistada com a sua interpretação para este mesmo depoimento.



Marília Pêra e Fernanda Torres também são confrontadas com as donas das histórias que interpretam, mas no primeiro caso a atriz “adianta” trechos que serão ditos posteriormente pela “personagem”, uma opção que, de certa maneira, diminui a cobrança em relação à veracidade da atuação, e no segundo Fernanda já começa tecendo algum comentário sobre o seu entendimento em relação à proposta do filme. Mary Sheila, por sua vez, abre Jogo de Cena prestando, aparentemente, um depoimento pessoal sobre seu ingresso no Nós do Morro, mas, minutos depois, o espectador percebe a conexão de sua fala com a de outra entrevistada, Jackie Brown.



A montagem de Jordana Berg, peça importante do filme, produz articulações diversas entre os depoimentos das mulheres que, em junho de 2006, contaram ao diretor as suas histórias de vida e as interpretações das atrizes, gravadas, no mesmo Teatro Glauce Rocha, três meses depois. Em alguns casos (quando é possível identificar), o espectador conhece a dona da história para depois assistir à representação dessa história por uma atriz; em outros, a atriz aparece primeiro diante do público.



Sentadas de costas para a platéia do teatro, as entrevistadas são captadas em close pela câmera de Coutinho. Ao final, o diretor registra, do ângulo da platéia, a imagem do palco italiano vazio. São movimentos contrários: um, de natureza anti-ilusionista pelo fato de a proximidade impedir ou dificultar o espectador de “acreditar” estar diante de um personagem; o outro, de natureza ilusionista, na medida em que o distanciamento propicia justamente a identificação entre quem assiste e o universo projetado em cena. Mas, nesse momento, já não há nada sobre o palco para o espectador realizar a sua projeção. Com Jogo de Cena , um projeto arriscado, Eduardo Coutinho alcançou um resultado surpreendente.

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