A produção chilena Segredos em família (no original, Algunas bestias), exibida, indicada e premiada em festivais de cinema desde o seu lançamento em 2019, ficou disponível na última semana para o público brasileiro, na plataforma de streaming Reserva Imovision. Com Jorge Riquelme Serrano à frente da direção, também responsável pelo roteiro (em parceria com Nicolás Diodovich), o filme era aguardado por alguns no meio cinéfilo – grupo no qual me incluo. Contudo, a decepção não poderia ter sido maior.
A premissa do longa-metragem é aparentemente simples e atrativa: com o objetivo de conseguir apoio financeiro familiar para a construção de um hotel, o casal chileno Alejandro e Ana convida Dolores e Antônio, pais da esposa e esperados investidores do negócio, para um final de semana no local, uma ilha inabitada nos arredores de Santiago. Com a ajuda de Nicolas, responsável pela manutenção do terreno e da casa ali existente, os quatro chegam à área acompanhados pelos adolescentes Consuelo e Máximo. Após uma série de acontecimentos bizarros que levam ao desaparecimento de Nicolas e do barco que os transportou, a família fica presa nesse lugar desprovido de luxo, serviços básicos de saneamento ou sinal de celular, e sem perspectivas de retorno à cidade. E é nesse cenário crítico que segredos e estranhas dinâmicas de convivência vêm à tona.
A primeira metade do filme desperta a atenção e o interesse do espectador ao desenvolver personagens carismáticos, embora de caráter duvidoso, e seus esdrúxulos relacionamentos interpessoais. Também apresenta diálogos dominados por uma enorme carga de crítica social, que, infelizmente, se perde por completo na segunda parte da obra, tanto em termos de roteiro quanto em muitos aspectos da direção, aniquilando a qualidade potencial que vinha sendo mostrada.
- A partir daqui, o texto pode conter alguns spoilers sobre a trama -
A misoginia e a objetificação da figura feminina começam com o arco narrativo de Dolores, matriarca da família. Interpretada por Paulina García, a personagem, que no início se mostrava no controle não apenas financeiro, mas também psicológico dos integrantes da família, torna-se uma mulher instável em um estalar de dedos, em crise com seu envelhecimento. Resumida então a essa única camada, Dolores passa a ter todas as suas ações e omissões pautadas por sua insegurança estética, perdendo completamente a razão e a força demonstradas inicialmente. Para a audiência, fica a desagradável sensação de que a sanidade de uma mulher madura está diretamente ligada a sua autoestima – um argumento raso para qualquer personagem feminina, principalmente na atualidade.
A escalação da atriz Consuelo Carreño para o papel homônimo já levanta a suspeita do espectador mais atento de que algo “fora do normal” estava por vir: afinal, a atriz de 28 anos, mesmo com uma caracterização exageradamente infantil, aparenta ser consideravelmente mais velha do que os ditos 15 anos da personagem. Já com poucos minutos de tela, fica evidente que a jovem é foco de relacionamentos singulares com os homens de sua família – especialmente com seu irmão mais velho.
Após inúmeras insinuações, não sobre o fato de que Consuelo é vítima de abuso, e sim sobre quem seria o responsável, o “segredo” é revelado: apenas ao público, pois os demais integrantes da família já estavam cientes do que acontecia, e seguiam passivos àquela situação perversa. Toda a temática do abuso e da omissão familiar já seria por si só impactante, entretanto Jorge Riquelme Serrano decide que a sugestão de violência não é suficiente em sua obra e a torna gráfica, em uma cena que pode ser qualificada como torture porn. Este termo, muito utilizado no cinema de terror, refere-se a cenas violentas inseridas na obra sem agregar valor narrativo, apenas com o objetivo visual de chocar – ou agradar – o espectador.
Ao longo de extensos 12 minutos, a personagem Consuelo é violentada das mais diferentes formas por seu abusador. Com tomadas repletas de male gaze (termo cunhado pela estudiosa Laura Mulvey para exemplificar obras cinematográficas em que a figura feminina é utilizada de forma torpe para provocar o prazer visual masculino) e diálogos nefastos, não fica claro se a audiência deve se chocar, se constranger ou – na pior de todas as hipóteses – ter alguma espécie de prazer com o que é exibido em tela. Completamente desnecessária à narrativa, sem nenhum tipo de qualidade cinematográfica ou estética, a sequência de atmosfera criminosa liquida qualquer ponto positivo que o filme eventualmente poderia ter.
Em seguida ao absurdo que tenta competir com a famosa cena de abuso do filme Irreversível, do diretor francês Gaspar Noé, o filme chega ao seu final, que pode ser resumido em uma palavra: nada. Não há nenhuma espécie de reviravolta, conclusão, justiça ou fechamento da trama, mas apenas uma efetiva revolta do espectador ao compreender que assistiu a mais de uma hora e meia de uma uma obra superficial, misógina e aparentemente desenvolvida com o objetivo de culminar naqueles fatídicos 12 minutos. Trata-se de um filme que nada acrescenta, agressivo, desnecessário e cruel que sobretudo eu, como mulher, gostaria de esquecer – se possível fosse.