Críticas


LADY CHATTERLEY

De: PASCALE FERRAN
Com: MARINA HANDS, JEAN-LOUIS COULLO’CH, HIPPOLYTE GIRARDOT.
23.11.2007
Por Luiz Fernando Gallego
O CORPO AUTÔNOMO E A INTIMIDADE DOS CORPOS

Nos primeiros diálogos desta versão para as telas de Lady Chatterley, escutamos ex-combatentes da I Guerra Mundial relembrando histórias dramáticas que presenciaram. Como a de um soldado que, durante uma batalha, teve a cabeça arrancada por uma explosão – mas cujo corpo, mesmo decapitado, prosseguiu correndo, dando alguns passos a mais. Um outro narra a morte de um sargento que teve os pés decepados por uma mina: o narrador do caso comenta que “mesmo sem ter nenhum órgão vital atingido, a morte sobreveio”. E reflete que o corpo pode agir de modos inusitados. A esposa de um deles – um oficial que ficara paraplégico - escuta no cômodo ao lado.



A metáfora é evidente: trata-se de uma mulher que se acomodou em uma vida constrangida pela alienação do corpo e da sexualidade na contingência de um casamento onde o marido ficou fisicamente incapaz para o ato sexual. De certa forma ela também estaria “morta” sem nenhum “órgão vital” atingido, mas seu corpo pode manter uma latência sexual que será despertada pela visão do torso nu de outro homem, hígido. Mesmo que ela “perca a cabeça” (ou por isso mesmo), poderá prosseguir na direção da excitação sexual em busca de satisfação, ainda que "sem pé nem cabeça" para o ponto-de-vista dos preconceitos vigentes



É bom que tais analogias (que seriam de gosto algo duvidoso, embora pertinentes) não sejam mais enfatizadas ao longo dos 168 minutos do filme – duração que não chega a cansar, absolutamente. Ao contrário, pode trazer enorme satisfação ao nos oferecer quadros de beleza visual elegante e da qual se pode desfrutar lembrando imagens, clima emocional e riqueza sensorial de filmes de Jean Renoir (Une Partie de Campagne, especialmente). O encadeamento da narrativa parece perseguir o formato de uma edição mais “cerebral” e algo “distanciada” como as de algumas adaptações literárias de Jacques Rivette com sua aparência enganosamente “fria” e elipses preenchidas por intertítulos como os dos filmes mudos antigos. Por outro lado, raras e breves cenas que se passam fora do palco central e quase único da história, surgem como filmes amadores de viagem, em cores borradas e com imagens imprecisas, um anacronismo de liberdade poética. Este equilíbrio entre emoção e discrição vai se apresentar também nos desempenhos irretocáveis.



Talvez poucos freqüentadores de cinema cheguem a relacionar logo de saída a atriz que faz o papel-título com a mesma que fez a personagem ´Gaël´ (a noiva do filho-yuppie de Invasões Bárbaras). E ao descobrirem que se trata da mesma atriz, provavelmente ficarão surpresos: Marina Hands está excepcionalmente sutil e, a um só tempo, intensa em sua criação de ‘Constance Chatterley’, a mulher de um aristocrata britânico impotente que, ainda nos primórdios do século XX, se envolve com o guarda-caça da propriedade, um simples empregado de seu marido. É a conhecida história de D. H. Lawrence, aqui adaptada a partir da segunda versão do escritor, ainda chamada “John Thomas e Lady Jane” (nomes dados aos genitais masculino e feminino, respectivamente) ou “Lady Chatterley e o Homem do Bosque” na tradução francesa - em vez do popular título do texto definitivo, O Amante de Lady Chatterley.



Os que conhecem esta segunda formatação de Lawrence dizem que seria algo menos “sexual” e mais “terna” do que a última redação que foi proibida em tantos países e tida como um livro “pornográfico” por tantas décadas. Não importa tanto que tenha sido esta a origem do roteiro da diretora Pascale Ferran: mas, sim, que o espectador poderá se encontrar com um dos filmes mais eróticos de todos os tempos, com sensualidade “à flor da pele” na acepção da expressão, mas – ao contrário do que se poderia esperar de uma produção recente e já no século XXI -, sem nenhuma cena de intercurso sexual “explícito” entre os atores que fazem a ‘Lady’ e seu (a rigor, também) empregado. Poucas vezes o ato sexual foi representado de forma tão realista e verossímil mostrando tão pouco (em relação ao que se vê em qualquer filme atual ou nas novelas brasileiras de televisão).



Se as imagens vão refletir a corporeidade dos personagens (um aleijado, outros hígidos, mas até então reprimidos pelas próprias amarras e preconceitos incorporados), o roteiro vai desenvolver, paralela e insidiosamente, a questão das diferenças de classes sociais em uma Inglaterra ainda “vitoriana”. É exemplar o diálogo onde ela agradece ao homem pela cópula que acabaram de ter. O homem nem consegue dizer de seu desconforto, pois não haveria jamais o que agradecer: ele também usufruíra - e muito - do corpo dela. E gozara com ela da mesma forma como ela havia gozado com ele: os corpos são autônomos em relação às classes sociais que a sexualidade não reconhece e nem faz tais distinções, atravessando - como já demonstrara Proust, dentre outros - os desníveis criados pelas barreiras econômicas e de berço que aparecem como ainda mais fortes do que as limitações físicas; e tão imobilizantes, que podem “paralisar” até mesmo os que não são paraplégicos.



O “agradecimento” polido da ‘Lady’ reduziria o ato sexual e o orgasmo atingido por ela a mais um mero “serviço prestado” pelo criado, tal como outros tantos: o faisão para o almoço, uma chave extra para a cabana, etc. Mas ele nem consegue falar nada mais diretamente a respeito: apenas fica aborrecido e diz que não haveria mesmo pelo que agradecer. Afinal, como um criado poderia criticar a mulher de seu patrão em tais papéis sociais, mesmo depois de desfrutarem da intimidade sexual? O ator transmite seu mal-estar pela mímica contrafeita - sem chegar a ser muito desagradável - e por uma tensão corporal equivalente ao que se passa em seu rosto.



Neste sentido, o desempenho de Jean-Louis Coullo’ch não é menos excepcional do que o de Marina Hands, agraciada com o chamado ‘oscar’ francês, o ‘César’ de melhor atriz de 2006, um dos muitos recebidos pelo filme: melhor filme, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia - dentre outros, certamente merecidos – sendo que a interpretação de Coullo’ch nem ter sido indicada fica como uma daquelas injustiças frequentes em tantas premiações. Também a performance de Hippolyte Girardot no ingrato papel do marido impotente merece destaque – na verdade, extensivo a todo elenco que consegue transmitir os estados afetivos ambivalentes dos personagens indo muito além das palavras faladas, através de expressões faciais nem por isso exageradas, mas contidas e cheias de significados implícitos (como na reação do homem na cena do “agradecimento” mencionada acima).



Mas, sem dúvida, o maior mérito do filme será o da orquestração obtida pela diretora Ferran em seu terceiro longa-metragem feito onze anos depois do anterior. Tantos anos parecem ter significado cuidado e capricho para esta realização: enquadramentos, ritmo, montagem e a já bastante louvada fotografia de Julien Hirsch (que fotografou para Godard em Nossa Música) colaboram para o ótimo resultado final. Por menos que importasse, os figurinos (também premiados), assim como os cuidados de recriação da época, reproduzem, sem “adaptações atenuantes” para o gosto e moda atuais, até mesmo o estilo de penteados femininos da década de 1920.



A valorização do “lado feminino”, a sensibilidade que se revela no viril guarda-caça (que ainda não se chama ‘Mellors’ como na versão final de Lawrence) pode indicar uma ênfase na leitura feminista da diretora – ainda que o escritor tenha sido um ‘feminista’ avant-la-lettre ao retratar a sexualidade das mulheres com uma intensidade que – na época – muitos preferiam ignorar. As tendências românticas de Lawrence na fusão idealizada do sexo com a natureza em cenas de chuva primaveril também pertencem à fonte literária do filme e – hoje em dia – podem soar um pouco ingênuas e edulcoradas, mas longe de prejudicar a totalidade harmoniosa que é o filme de Pascale Ferran.



É a partir da intimidade física, corporal e sexual que vai ser desenvolvida - e liberada - uma maior intimidade afetiva (e franqueza verbal) entre aquele homem e aquela mulher originados de extratos sócio-econômicos tão diversos e até mesmo incompatíveis. Da mesma forma, o filme propicia ao espectador essa intimidade, que vai criando aos poucos, em um ritmo próprio e sem precipitações. É a ficção reproduzindo a aproximação mais íntima das vidas, fora da tela e em telas privilegiadas como esta.



# LADY CHATTERLEY (LADY CHATTERLEY)

França/Bélgica/Inglaterra, 2006

Direção: PACALE FERRAN

Roteiro: ROGER BOHBOT e PASCALE FERRAN

Fotografia: JULIEN HIRSCH

Montagem: YANN DEDET e MATHILDE MUYARD

Música: BÉATRICE THIRIET

Elenco: MARINA HANDS, JEAN-LOUIS COULLO’CH, HIPPOLYTE GIRARDOT, HÉLÉNE ALEXANDRIDIS.

Duração: 168 minutos

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