Tudo se parece, mas ao mesmo tempo não é. As pedras portuguesas na calçada, a cópia do "Cristo-Rei" (um Cristo Redentor miniatura), as padarias e seus balcões de alumínio com vitrines cujos salgados (para surpresa de um brasileiro incauto) são servidos frios. O curta-metragem O Rio e seu labirinto (coprodução Portugal / Brasil, ficção, 24 min, 2023), exibido na competitiva nacional, retrata o cotidiano de jovens neste "sítio" estranho-familiar que é Lisboa. Vivendo em Portugal há 7 anos, o carioca Ian Capillé, no seu quinto curta-metragem, traduz a melancólica "inútil paisagem" dos amores perdidos, mas agora do outro lado do Atlântico.
Formado em Cinema pela UFF, Capillé parece querer transbordar a experiência fluminense para Lisboa, transpondo os diferentes "rios" que atravessaram sua vida. A barca da Baía de Guanabara está agora no Rio Tejo. Niterói e Almada se tornam cidades-irmãs. A tópica do reflexo e do espelhamento é uma constante. A protagonista (Gabriela Giffoni) e sua amiga (Nina Botkay) vão se amalgamando à medida que estabelecem laços. Os desenlaces amorosos, por sua vez, se refletem na arquitetura labiríntica da cidade. Os caminhos tortuosos da vida, de encontros e desencontros, vão criando "nós", refrações e até miragens na narrativa. Mesmo a estrutura temporal do roteiro comporta um interessante dobra. Ao nos aproximarmos do fim da história, é como se as pontas do passado e do futuro fossem lentamente se aproximando, um embolar do fio narrativo que mantém o espectador de sobreaviso em sua cadeira.
O mesmo tropo do duplo reaparece no novo longa de ficção de Leonardo Mouramateus, A vida são dois dias (Brasil, ficção, 82 min, 2022), exibido na sessão especial hors concours. O filme conta a história de dois irmãos gêmeos portugueses com personalidades muito distintas, que são doppelgänger ou nemesis um do outro. Enquanto Rômulo é uma pessoa espontânea, afável e gregária, Orlando é sorumbático, arrogante e soturno (os dois encarnados pelo mesmo ator, Mauro Soares). Apesar de as marcas do estilo distintivo do realizador cearense estarem presentes – a troca epistolar, a influência do registro literário (dividido em 5 capítulos), o narrador em voz over, a performance dançante e as relações coletivas (seriam estas as "alegrias repetidas" citadas ao longo da narrativa?) –, há algo de peculiar neste novo projeto, que reflete a experiência de não pertencimento de Mouramateus, que vive há quase 10 anos em Portugal.
O irmão "solar" mora no Brasil. Depois de ter vivido em Fortaleza, ele se muda para o Rio de Janeiro, se integrando a uma comunidade de jovens artistas alternativos (percurso invertido, semelhante ao da biografia do diretor). Enquanto isso, no Velho Mundo, o gêmeo "aldrabão" aplica golpes, vende livros raros roubados para uma intelectualidade portuguesa deslumbrada com o próprio passado. O gêmeo "noturno" vê-se então obrigado a ir, a contragosto, aos trópicos para prestar auxílio ao irmão que convalesce de uma doença misteriosa. Como um bom ladrão, ele afana a obra do irmão e a publica em seu nome, ganhando fama e notoriedade – numa espécie de alegoria do roubo colonial. Isso tudo se passa em um Brasil distópico, cuja monarquia foi restaurada. Com tintas à la Oswald de Andrade, Mouramateus constrói uma caricatura da elite artística e intelectual de Brasil e Portugal, países que, por sua vez, recebem as alcunhas de "Ilha do Presente" e "Ilha do Passado". Enquanto, na primeira, os habitantes ainda sonham com um futuro (mas se digladiam nesse processo), na segunda os homens sofrem apegados à perda de um passado outrora glorioso.
Além do claro tom de deboche, as personagens parecem ser diferentes facetas ou personalidades de Mouramateus. Seria um gesto especular do diretor? Um acerto de contas com um Brasil que deixou para trás (ou que o deixou para trás)? Talvez um desejo de reacordar (ou recordar) em um país que não reconhece mais como seu? Seria um movimento antropofágico, de comer e regurgitar a "sopa cultural", numa ode aos girassóis da Geléia Geral de Gilberto Gil e Torquato Neto? Para além de uma saudação a uma suposta brasilidade, o filme parece querer retratar, sobretudo, o sentimento de uma geração globalizada e desterrada, que não se identifica dentro dos gêneros tradicionais do Cinema Brasileiro ou do Cinema Português, ou mesmo dentro de qualquer ideia estanque de identidade. O que perdura é a celebração dos microafetos nômades. A sensação, no entanto, ao sairmos do filme, é que algo de potente que ali crescia se perdeu no caminho.
Essa dupla de filmes chamou atenção para um outro detalhe suprafílmico: a presença de repetidos nomes na equipe técnica. A fotógrafa Aline Belfort e a montadora Deborah Viegas repetem-se nos créditos de diversos outros filmes presentes no festival. No fora de quadro de suas narrativas, vemos a constituição de uma comunidade que tem se juntado para dar luz a uma nova cena artística apátrida.