Críticas


NO VALE DAS SOMBRAS

De: PAUL HAGGIS
Com: TOMMY LEE JONES, CHARLIZE THERON, SUSAN SARANDON.
30.11.2007
Por Luiz Fernando Gallego
BANDEIRAS ESFARRAPADAS

Em uma das cenas iniciais de No Vale das Sombras, o policial militar aposentado e ex-combatente da Guerra do Vietnam, Hank Deerfield (Tomy Lee Jones), percebe uma bandeira norte-americana içada de cabeça para baixo. Ao corrigir o erro, cometido por um latino, explica que, segundo determinadas convenções, tremulando daquele jeito, a bandeira transmitia um pedido de socorro por uma situação muito grave. É a primeira metáfora (óbvia) do filme - e será retomada, com ainda maior ênfase, bem mais adiante.



Uma outra “alusão simbólica” do roteiro está no próprio título original, In the Valley of Elah, lugar onde o pequeno David da Bíblia teria enfrentado e, com ajuda de um estilingue, vencido o gigante Golias. Ele teria conseguido acertar uma pedra bem entre os olhos do adversário depois de sobrepujar seu justificável medo e de ter “olhado o monstro bem nos olhos” - conforme a narrativa que o mesmo Sargento Deerfield apresenta para um menininho que teme dormir com a porta do quarto fechada.



As mensagens explícitas são: o país vai mal (como simboliza a bandeira ao contrário) e é preciso enfrentar “os monstros”, mesmo que gigantescos: tal como o personagem central faz, quando afronta mundos e fundos para tentar descobrir as circunstâncias de desaparecimento do seu filho, um soldado que voltara do Iraque há poucos dias (sem ter entrado em contacto com seus pais) e que não teria retornado, misteriosamente, à base após uma saída de licença do quartel.



O roteiro vai incluir digressões em relação à personagem de uma detetive que se mostra pouco experiente (Charlize Theron) e que é mãe do garotinho medroso mencionado acima: ela é objeto de menosprezo de seus colegas policiais, não necessariamente mais competentes do que ela (e não são), mas por puro machismo. No entanto, é ela quem vai vencer as resistências de regras burocráticas (suas, de sua repartição - civil - e do exército americano) para ajudar aquele pai em busca da verdade sobre o filho sumido. Há informações, até mesmo vagas e dispensáveis para o fio central da história, sobre esta personagem algo secundária (mas interpretada por nova estrela poderosa em Hollywood). Uma passagem vai incluir a queixa que ela recebe de uma mulher quanto a um homem que afogou um cachorro, cena que pode ser esquecida ao longo de tantos eventos que parecem mais importantes no desenrolar do enredo. Entretanto, seguindo regrinhas de manuais americanos de roteiro, pontas factuais devem ser amarradas em algum momento posterior, mesmo que com laço mal dado e supérfluo.



E, lamentavelmente, pontas mais importantes - as intenções e os significados pelos quais os episódios filmados foram selecionados - vão se revelar mais soltas e esfarrapadas do que as de outra bandeira americana, enfaticamente focalizada perto do final. É curioso observar que Paul Haggis, o diretor deste No Vale das Sombras, escreveu recentemente o roteiro para Flags of Our Fathers (aqui chamado de A Conquista da Honra), de Clint Eastwood, que girava em torno da famosa fotografia de soldados americanos levantando uma bandeira americana no topo de uma colina conquistada aos japoneses na II Guerra Mundial. O conhecido e “glorioso” flagrante era questionado como peça de propaganda militar. Seja como for, não se trata apenas de descer da colina de Iwo Jima para o “vale de Elah”: em sua primeira direção depois de Crash - No Limite, Haggis também desce novamente às manipulações de roteiro que envolveram tanta gente no dramalhão superestimado que foi Menina de Ouro, escrito por ele e dirigido por Eastwood.



A questão mais grave de No Vale das Sombras, no entanto, não é querer pegar o espectador pela inevitável emoção que envolve o desaparecimento de um filho - como nas cenas com Susan Sarandon (a mãe) falando ao telefone com Tommy Lee Jones -, mas pretender questionar a intervenção americana no Iraque a partir de uma situação revelada no final do filme que não diz respeito necessariamente a apenas esta guerra específica que a incompetência do atual (des)governo Bush inventou. Trata-se de algo que pode se dar em todas as guerras, quando qualquer verniz de civilização que porventura ainda exista dá lugar à barbárie latente nos seres humanos. Quase toda história de investigação policial do tipo whodunit? (e “quais os motivos”?) tende a capturar a atenção e o interesse da platéia, mas Haggis chega a ser desleal ao colocar tantas pistas no sentido de uma revelação “política” que acaba se reduzindo a algo bem mais inespecífico.



Outra manipulação do roteiro é – a todo instante – fazer o personagem do pai despertar de pesadelos onde escuta a voz do filho pedindo ajuda. O espectador fica sem saber do que se trata, podendo até supor alguma inverossímil comunicação telepática até que o insistente falshback seja esclarecido mais objetivamente. O cacoete do roteiro neste caso é que se trata de apenas mais uma carta que não precisaria ficar escondida na manga durante tanto tempo de projeção: refere-se, possivelmente. ao desconforto do pai em relação à carreira que o filho escolhera, similar à sua - e talvez estimulada por ele (conforme acusações da mãe do rapaz ao marido que não são suficientemente claras para o espectador).



O desempenho de Tomy Lee Jones é uma viga-mestra de sustentação do que se salva no filme, e o ator está presente em praticamente todas as cenas. Peças importantíssimas também são as participações bem mais episódicas de Susan Sarandon e de Wes Chatham (a quem cabe a revelação - com chocantes sinais de afeto aplainado - sobre o que aconteceu). Frances Fisher chama a atenção por apenas duas breves tomadas e Jason Patric mostra uma poker face correta. A fotografia é de Roger Deakins, com longa e exemplar folha corrida em inúmeros filmes dos Irmãos Coen. A música é de Mark Ishan, usada sem muitos exageros. Pena que tais colaborações não sejam suficientes para tirar o filme do vale de sombras em que o roteiro se perde e da vala comum das manipulações que podem envolver em um primeiro momento, mas não resistem a uma reflexão mais crítica.



OS DOIS PARÁGRAFOS FINAIS PODEM SUGERIR REVELAÇÕES DO ROTEIRO QUE TALVEZ NÃO INTERESSEM A QUEM NÃO VIU O FILME E PRETENDE VÊ-LO



Não é que o drama retratado, longinquamente extraído de um fato real, não merecesse ser abordado. Consta que o episódio acontecido em 2003 com Richard Davis, em Columbus, na Geórgia e que foi matéria da revista Playboy no ano seguinte, envolvia pessoas com características de personalidade complicada antes mesmo de terem estado na Guerra do Iraque. Analogamente, com o sinal trocado, o pai do soldado desaparecido - que se mostra um verdadeiro ‘herói’ e super-detetive deste filme - não se tornou um freak depois de sua passagem pelo Vietnam, outra das guerras que os governantes americanos alimentaram ingloriamente; mas há um enorme número de casos que extrapolam o antigo conceito “neurose de guerra”, envolvendo comportamentos anti-sociais e psicopáticos gravíssimos entre ex-combatentes daquele período. Se é para mostrar o que e o quanto o ser humano pode ser capaz de fazer em situações de desumanização, Pecados de Guerra, de Brian de Palma, também inspirado em fatos reais e lançado há mais de dezoito anos, era mais direto. E muito melhor.



A intenção (e pretensão) de Haggis é tentar demonstrar a deformação de caráter que se estabeleceria na volta (sem volta) da barbárie para o “mundo civilizado”, longe dos locais de combate. Mas uma pretendida discussão "política" não fica bem servida pelo drama que é mais psico(pato)lógico e que pode, inclusive, ser problematizado em diferentes casos sobre causas (ou "álibis"?) de traumas e suas conseqüências: trata-se de personalidades que já seriam, no mínimo, previamente propensas? Ou de pessoas “normais” que deterioraram por conta de terem vivido a barbárie de uma guerra mais do que “suja”? Existiram guerras “limpas”? Afinal, tudo pode ser reduzido a atitudes graves de “maus meninos”, sem entrar na importância do cenário escolhido como pano de fundo: uma invasão mais do que questionável e que é orientada no sentido de favorecer - e tentar acobertar - episódios já amplamente revelados como os de Abu Ghraid.



# NO VALE DAS SOMBRAS (IN THE VALLEY OF ELAH)

Estados Unidos, 2007

Direção: PAUL HAGGIS

Roteiro: PAUL HAGGIS e MARK BOAL

Fotografia: ROGER DEAKINS

Montagem: JO FRANCIS

Direção de Arte LAURENCE BENNETT

Música: MARK ISHAN

Elenco: TOMMY LEE JONES, CHARLIZE THERON, SUSAN SARANDON, JASON PATRIC.

Duração: 121 minutos

Site oficial: http://wip.warnerbros.com/inthevalleyofelah/

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