Outro filme que aborda o retorno de um unheimlich é o novo longa da brasiliense Ana Vaz, É noite na América (Itália/França/Brasil, 66 min, 2022), exibido na mostra competitiva internacional. Vaz, conhecida por seus projetos experimentais, também aborda o sentimento de desconforto causado por corpos-estranhos que voltam para os territórios de seus "colonizadores": os animais que fogem do avanço da monocultura da soja e ocupam os espaços futuristas da capital do Brasil. Filmado no zoológico de Brasília durante a pandemia, vemos, em super close-up, o olhar desses animais silvestres feridos que foram resgatados pela Polícia Militar e levados ao Zoo para serem tratados por veterinários. Lá eles vivem numa espécie de limbo, um asilo de reabilitação do qual nunca poderão sair.
Geralmente tidos como objetos de estudo dos olhares humanos, agora os animais parecem inverter o jogo e se tornam os sujeitos que perscrutam os seus algozes. Eles encaram a câmera com olhar inquisidor, como se perguntassem a nós a razão de estarem ali. Em debate, após a sessão no festival, Ana fez uma paralelo entre a vida dos animais e dos refugiados. Como os "refugos do Ocidente" que chegam à costa europeia em busca do sonho republicano que promete oportunidades e direitos iguais a todos, os animais também são forçosamente obrigados a fugir de seu habitat e se encontram presos na promessa utópica da modernidade que não se realizou.
Para além do libelo antiextrativista e ecológico, o filme é também uma interessante investigação sobre a linguagem cinematográfica. Filmado inteiramente em 16mm, com películas há muito vencidas, a materialidade do grão da imagem (uma outra personagem presente em todo o filme) nos faz lembrar de que a película fotoquímica, também ela, é composta por material orgânico e que, como os animais, está em vias de extinção. O título faz alusão à "noite americana", técnica de pós-produção que simula a noite com um filtro azul, muito utilizada no cinema clássico hollywoodiano, e aplicada igualmente às imagens de Vaz. A trilha sonora – como é costumeiro, composta pelo pai da diretora, Guilherme Vaz – lembra os gêneros do thriller policial e, em certos momentos, assemelha-se à paisagem sonora de Mulholland Drive ou Twin Peaks, como se saída do universo de David Lynch. Ao final, uma longa imagem em plano-sequência da queda de uma cachoeira surge como uma clara referência à célebre frase "cinema é cachoeira", de um dos fundadores do cinema nacional, Humberto Mauro.
Da mesma forma que Ana Vaz, Janaína Nagata, em seu primeiro longa, Filme particular (Brasil, doc., 2022, 90 min), desorienta a clássica divisão de sujeito e objeto, operando outra subversão do olhar. Segundo o lettering inicial, a diretora teria encontrado o rolo de película – que dá origem ao filme – ao acaso na internet. O argumento é curiosamente muito parecido ao do encontro fortuito de Ken Jacobs com o famoso Perfect Film (1986), que mostra imagens do dia do assassinato de Malcom X, um dos filmes mais icônicos do movimento do found footage experimental norte-americano. O filme de Nagata foi, não coincidentemente, exibido na sessão Director's Cut após um filme de outra realizadora que tem se destacado na investigação ensaística em desktop, Chloé Galibert-Laîné. Essa programação mostra que a brasileira está dialogando com uma frutífera cena contemporânea – também muito forte nas artes visuais –, que inclui outros nomes como a portuguesa Susana de Sousa Dias, o ganês John Akomfrah e o inglês Adam Curtis.
Como os supracitados diretores, Nagata realiza um filme puramente de montagem, em que acompanhamos sua investigação forense "ao vivo" na mesa de edição (é claro, preparada com uma pesquisa e um roteiro pré-estabelecido) por meio de um díptico que, como no método Kuleshov, vai adicionando novos sentidos às imagens originais. Como os caçadores no safari, que se deparam com animais exóticos que saltam subitamente à frente do carro, a diretora-montadora dá "de cara" com uma contra-história que vai lentamente surgindo nas entrelinhas e arestas das imagens. Com ajuda de ferramentas de reconhecimento facial, do Google, do Youtube e da Wikipedia, ao ralentar e observar frame a frame as imagens, ela descobre camadas subterrâneas de sentido que vão emergindo desse suposto inocente arquivo amador, a princípio inadvertido em uma primeira visada.
O que parece apenas um registro frugal de uma família viajando a turismo na África passa a revelar o racismo e a história da África do Sul que subjazem àquelas imagens. Uma bucólica cena na praia revela-se um espaço segregacionista que, somente em uma segunda vez, percebemos estar repleta apenas de corpos brancos. Vamos gradualmente sendo conduzidos a perceber que aquela família feliz é parte de uma elite supremacista, com conexões inclusive com o primeiro-ministro Hendrik Frensch Verwoerd, o famigerado arquiteto do apartheid. A pequena criança loura e as belas mulheres sorridentes passam então, ao fim do filme, a nos dar arrepios e nos parecem figuras diabólicas. Esse primoroso trabalho de arquivo e pesquisa só não é mais potente devido a uma lentidão e um didatismo da montagem, preocupada, talvez, com uma "correta" leitura do espectador.
Assim como o filme de Nagata, o longa de estreia de Amanda Devulsky (coincidentemente, outra candanga também na Competitiva Internacional), Vermelho bruto (Brasil, 205 min, 2022), pretende, a partir do microcosmo, revelar o macrocosmo no qual, em tese, seria possível vislumbrar, nas histórias de pessoas comuns, a história do país. O filme, também de montagem, é composto exclusivamente de arquivo doméstico de quatro mulheres do Distrito Federal que se tornaram mães ainda adolescentes no período da redemocratização. Com a premissa de ser um filme experimental sem fio condutor linear ou cronológico – ao estilo de Jonas Mekas –, as histórias narradas em primeira pessoa vão se misturando, até chegarmos a 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro.
Temas como o direito ao aborto, a falta de educação sexual, o abandono parental, a violência doméstica e a violência política permeiam os relatos dessas mulheres de diferentes classes sociais, que lutam cotidianamente (às vezes sem nem se darem conta) contra a descriminação de gênero. Intui-se o argumento da diretora: é o machismo atávico da sociedade brasileira que culmina nas eleições da extrema direita no país. Apesar das riqueza das histórias e da abordagem ousada na linguagem, o filme se sobressai pelo excesso. Uma escolha mais minuciosa do material permitiria o espectador deambular com mais gosto nos fluxos da memória, que por vezes se tornam arrastados sem justificativa estética. O arquivo pode falar mais no encontro silencioso das imagens. Isso, no entanto, não impediu que o filme fosse premiado, tendo recebido Menção Especial do Grande Prémio de Longa-Metragem Cidade de Lisboa.