Críticas


OPPENHEIMER

De: CHISTOPHER NOLAN
Com: CILLIAN MURPHY, ROBERT DOWNEY JR., FLORENCE PUGH
20.07.2023
Por Mari Dertoni
Nolan usa preciosismo técnico e rigor estético, mas adota tom menos humano possível, atendo-se bem mais aos fatos científicos e aos conflitos políticos

“Bomba atômica”: um termo, por si só, apavorante. Uma arma de destruição em massa criada pelo homem, que ajudou a dizimar milhares de pessoas quando detonada pelo governo americano contra o Japão na Segunda Guerra Mundial. Hiroshima e Nagasaki sofreram horrores radioativos inenarráveis que perduraram por muitos e muitos anos após a explosão da bomba que surgiu por meio do Projeto Manhattan e da necessidade de manter o controle e a hegemonia bélica do país mais rico do mundo. Christopher Nolan escolhe mais uma vez retratar um horror real, como fez em Dunkirk (2017), longa que também se passa no período de Segunda Guerra Mundial, e conta com Cillian Murphy no elenco. Em Oppenheimer, Murphy vive J. Robert Oppenheimer, físico que ficou conhecido como o “pai da bomba atômica”. A cinebiografia é inspirada no livro vencedor do prêmio Pulitzer “Oppenheimer: o triunfo e a tragédia do Prometeu americano”.

No cinema, essa explosão catastrófica gerou um dos mais famosos monstros retratados em tela grande, originado do trauma e do medo do povo japonês, devido às consequências e aos horrores sofridos com a retaliação nuclear americana: em 1954, Ishiro Honda filmou Godzilla, transfigurando as dores de um povo em uma criatura radioativa e medonha, mas que, em algumas versões (e muitas já foram feitas depois dessa), é encarado também como um deus pelos japoneses. Assim como Godzilla, Robert Oppenheimer é colocado em cena ora como um Prometeu – o Titã mitológico que traz o fogo de volta à humanidade e estabelece a supremacia do homem sobre todas as raças, mas que, por causa disso, sofre uma dura punição divina –, ora como um homem com saberes tão revolucionários que ganha poderes de um deus que decide como e onde pessoas irão morrer. Robert, além de inventar a bomba que findaria a guerra e mudaria para sempre o jogo político-militar no mundo, foi diretamente influente em onde ela deveria ser detonada e sob quais circunstâncias.

O status de Deus dado a Robert Oppenheimer é registrado por Nolan e sua câmera de forma incisiva. Vemos muitos super-close-ups no rosto de Cillian Murphy, diversas vezes o acompanhando rente ao pescoço, de forma quase sufocante, em que o físico é o único objeto em foco, e todo o resto segue em plano de fundo desfocado, retratando não só sua importância, mas o tamanho do peso da responsabilidade que ele carrega nos ombros. Murphy, apesar de ser a estrela do longa, passa menos tempo do que se imagina em protagonismo absoluto, pois, conforme as três horas de duração do filme vão sendo consumidas, nos damos conta de que Nolan transformou o homem-mito em uma peça componente do desenrolar de um intenso e denso thriller político junto de Lewis Strauss, brilhantemente interpretado por Robert Downey Jr.

A figura de Strauss – um oficial naval americano e filantropo que foi presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos (a AEC) e também peça-chave no desenvolvimento de bombas nucleares e em políticas de energia nuclear estadunidenses – começa a tomar conta do filme gradativamente e aparece em uma decupagem de saltos temporais no longa, com uma preocupação especial de Nolan em fotografar todas as cenas em que o personagem aparece em preto e branco. Essa escolha estética nos faz lembrar imediatamente de Dr. Fantástico ou Como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba (1964), a comédia satírica de Stanley Kubrick que igualmente aborda questões do período da Segunda Guerra, Guerra Fria e a explosão da bomba nuclear. A imagem de Strauss, vivida por Downey Jr., se assemelha à de Peter Sellers como Dr. Fantástico, também filmado sem o uso de cores por Kubrick.

A partir do meio do segundo ato, começamos a ver um Robert Oppenheimer vilanizado e atordoado, mais parecido com o monstro Godzilla e visto como uma potencial ameaça à pátria, do que com o poderoso Prometeu. Por meio de um jogo de articulações políticas que visam manchar sua imagem e acabar com sua influência como figura pública e celebridade no mundo da física, um conselho é montado para investigar o passado e as possíveis ligações de Robert com o comunismo, colocando-o propositalmente sob fortes suspeitas de traição à nação estadunidense, como em uma enorme “caça às bruxas” – fato que se encaixa bem na referência à mitologia e ao castigo sofrido por Prometeu. Todo esse trâmite torna considerável parcela das filmagens em uma espécie de tribunal informal, com muitas cenas de depoimentos contra e a favor de Oppenheimer.

Nolan optou por registros mais formalistas e protocolares, mas fez um uso poderoso da trilha musical, mantendo uma base de sustentação impactante a toda obra, que, por ser pautada em diálogos expositivos incessantes e um tanto exaustivos, tudo mudaria de figura sem o fôlego que a trilha proporciona; e o diretor fez ótimo uso deste artifício. Assim como em Dunkirk, há um preciosismo na edição de som e na escolha da trilha constantemente presente em alto e bom som, desta vez assinada pelo sueco Ludwig Göransson, com composições em orquestra e muita música clássica, que ora visa tensionar, ora abrandar as cenas. Em Oppenheimer, além do som em fortíssimos graves advindos de vestígios explosivos de moléculas atômicas, Nolan investe em interferências sensoriais em momentos nos quais Robert Oppenheimer sofre com alterações em seu estado mental, por meio de rompantes de lembranças macabras que o assombram acerca do monstro que ele mesmo criou e de todo peso que isso se tornou para ele.

A expectativa visual é grande para um diretor extremamente técnico, que filmou com tecnologia avançada, especialmente para ser exibida em telas IMAX, e nesse quesito Nolan segue seu preciosismo, dando até indicações da melhor posição para se assistir ao filme na sala de cinema e desprezando reproduções em pequenas telas. Dito isso, Oppenheimer não consegue chegar ao ápice visual que seu criador prospecta: ficamos bastante tempo à espera de ver a tela do cinema pegar fogo por completo; esse momento chega, mas passa rápido, e logo estamos de volta ao formalismo estético dos registros nesta cinebiografia de Christopher Nolan – que se permite algumas interferências surrealistas e até momentos lúdicos, como vislumbres visuais de Robert e a inclusão da figura cativante de Albert Einstein (Tom Conti), que surge como um consultor de Oppenheimer e carrega uma aura um tanto mística em suas aparições.

O elenco conta com muitos nomes de peso, mas muitos passam quase como uma sombra em tela, como uma fumaça dissipada pós-incêndio. Nolan faz questão de incluir, além de Murphy e Downey Jr., Florence Pugh, Emily Blunt, Matt Damon, Rami Malek, Josh Hartnett, Casey Affleck, Ben Safdie, Gary Oldman, David Dastmalchian, Kenneth Branagh, e esses são apenas alguns destaques de um elenco gigantesco que é composto primordialmente por homens, mas conta com duas atrizes que mereciam um espaço um pouco maior.

Florence Pugh (Midsommar, 2019) interpreta Jean Tatlock, figura feminina super importante para Robert Oppenheimer, não só na vida pessoal, mas também por sua influência política. Pugh alcança uma atuação intensa em uma raríssima cena de sexo na filmografia de Nolan, um diretor que definitivamente não tem experiência em filmar corpos, mas que, à sua maneira, conseguiu encontrar um balanço para uma cena interessante entre Murphy e Pugh. Emily Blunt (Sicario, 2015) atua como “Kitty” Oppenheimer, esposa de Robert, e representa um peso dramático que soa desperdiçado e deixado no canto, com pouca profundidade, assim como a personagem de Pugh. Apesar da proximidade com o protagonista, ambas são reduzidas a curtas cenas.

Oppenheimer é uma cinebiografia, e Nolan usa seu preciosismo técnico e rigor estético para adaptar essa história de horror americana para o cinema, trazendo também pitadas de horror em sua linguagem, mesclando uma história real com assombros psicológicos e morais, deixando-a bonita e interessante o suficiente para chegar ao fim. O diretor mantém sua rigidez na direção de atores, no tom menos humano possível da questão, atendo-se bem mais aos fatos científicos – e aos conflitos políticos que o efeito atômico gerou naquele contexto histórico – do que na devastação que causou aos seres humanos e ao Planeta Terra. O longa mostra Robert Oppenheimer como um homem que teve sua ascensão máxima por meio de seu brilhantismo acadêmico e é tomado por forças maiores do que ele mesmo, que vive sua crise moral e existencial, mas por um ângulo que passa longe de nos cativar e emocionar em qualquer sentido.


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