Críticas


VIDA DOS OUTROS, A

De: FLORIAN HENCKEL VON DONNERSMARCK
Com: ULRICH MUEHE, SEBASTIAN KOCH, MARTINA KEDECK, ULRICH TUKUR.
30.11.2007
Por Luiz Fernando Gallego
O OBSCENO E A REENGENHARIA DE ALMAS

Etimologicamente, o termo obsceno deriva daquilo que deveria estar “fora da cena”, ou seja, aquilo que não deveria estar sendo visto.



O que faz uma pessoa se transformar, a serviço do Estado, em espião do que se passa na intimidade alheia? Dinheiro? Convicção ideológica que aceita a espionagem como algo que visa atingir fins idealistas, e que pelos fins justificaria quaisquer meios utilizados, ainda que os mais mesquinhos? Carreirismo em situações políticas de exceção onde a privacidade alheia é invadida na busca de indícios de “traição” à ordem ditatorialmente estabelecida e dentro da qual se busca alcançar privilégios?



A psicanálise nos traz o conceito de “cena primária”, aquilo que se passa na observação e/ou na fantasia infantis sobre o que fazem os casais entre quatro paredes com as portas fechadas. Que “brincadeira” é aquela da qual a criança está excluída? Eles brincam ou brigam? Por que arfam, gemem, sussurram ou até mesmo gritam? Por que a criança não está presente?



O voyeurismo como perversão na vida adulta pode ser uma resultante da manutenção da situação infantil de “espectador” que está “fora da cena”. E a “cena” (mesmo que sexual) não seria em si mesma “obscena” dentro da conotação que o termo assumiu: “obsceno”, no caso, seria aquele que está “fora da cena” e que não deveria estar presenciando, vendo ou escutando o que se passa naquele espaço íntimo, agora desrespeitado.



A Vida dos Outros trata exatamente desta circunstância sem se preocupar com "explicações" sobre as motivações de um rígido e exemplar funcionário de uma polícia política secreta (com seus tentáculos onipresentes) que passa a espionar a intimidade de um consagrado autor teatral e sua amante, uma popular atriz. Este casal forma uma dupla considerada modelar, artística e politicamente, em um país subjugado por um governo totalitário e interferente nas vidas privadas de seus cidadãos. Por sua vez o espectador vai observar este "encontro" - ou desencontro - à distância, do espião com o casal, assim como suas conseqüências para tantas vidas: a própria (do espião) e as "dos outros".



Todos estão envolvidos, voluntariamente ou não, na teia da temida Stäsi - abreviação de “Ministério para a Segurança do Estado”, o famoso serviço secreto de inteligência da ex-República Democrática Alemã que funcionou de 1950 até a queda do Muro de Berlim em 1989, tido como um dos mais eficientes dentre muitos outros similares de governos totalitários ou/e ditatoriais.



A Stäsi contava com noventa e um mil agentes oficiais e quase o dobro de colaboradores não-oficiais (cento e setenta e cinco mil outros alemães), tendo produzido mais de quatro milhões de dossiês dentro de uma população de dezesseis milhões de pessoas. Mesmo após uma tentativa de destruir tais documentos (quando da queda do muro), ainda restaram 180 quilômetros de dossiês intactos, agora disponíveis para os cidadãos antes investigados. Ou seja, um retrato arrepiante do verdadeiro “Grande Irmão” original previsto por George Orwell em 1984. A mesma severa organização burocrática que se estabelecera na Alemanha nazista assumiu outra coloração - o que demonstra que, independente da cor política, à direita ou (supostamente) à esquerda, governos totalitários serão sempre como ditaduras intolerantes para com qualquer mínima atitude ou pensamento que “desafine o coro dos contentes” do establishment e da situação dominantes.



Neste sentido, o filme lembrará a muitos brasileiros os tristes anos de nossa ditadura militar fascista, como a que ocorreu em outros países latino-americanos na época. Se por aqui houve episódios patéticos como (apenas um, como exemplo emblemático) a intenção de proibir (ou prender) Sófocles (!) por haver escrito Electra, abordando a queda do ditador Egisto, o que o filme mostra da ex-Alemanha Oriental é tão somente algo mais sofisticado e organizado - entretanto, com a mesma atitude persecutória e perseguida de descobrir “inimigos do sistema”. Ou mesmo fabricá-los para manter a máquina de repressão em funcionamento supostamente justificável. Ou ainda, por interesses particulares e espúrios dos poderosos privilegiados.



A espionagem que “tudo olha, tudo vê” sem limites, espraia-se como uma ameba gigantesca que contamina todo o tecido social e revela o mesmo poder de contágio mórbido de uma epidemia: em algum momento do enredo deste filme não há quem não esteja observando as reações alheias: pode ser um grupo de pessoas potencialmente visadas que lançam pistas falsas para testar se estão sendo espionadas; ou alguma entidade superior que espiona o espião; pode ser um homem alertado de forma perversa sobre quem dá carona à sua amante. Há uma tomada na qual este homem, para não ser visto pela mulher, gruda-se à parede ao lado da porta por onde ela entra, absorta e sem percebê-lo. Uma cena bem mais adiante mostrará o mesmo enquadramento do mesmo lugar, só que com outros personagens nas mesmas posições dos anteriores.



A Vida dos Outros aborda esses temas de forma bem intensa através de um roteiro de fortes características literárias: uma primeira visada pode fazer supor que se trata de um “filme de enredo” que quer contar sua ótima história de modo claro, objetivo, direto e algo “clássico” ou mesmo “acadêmico”. O que seria uma injustiça para com a forma e a narrativa, “clássicas”, sim, mas na melhor acepção da palavra.



Um olhar mais atento - ou quando se revê o filme uma segunda vez - poderá permitir que nos descolemos um pouco da sedução dos acontecimentos, suas surpresas e características algo “hitchcockianas” de ‘suspense’ (não no sentido necessariamente enervante, mas sim, como era conceituado pelo mestre Hitchcock: o espectador sabendo de algo a mais que os personagens desconhecem quando se expõem a situações de risco – riscos que eles ignoram, mas que o espectador sabe que existem).



Ao perceber o modo como as imagens são orquestradas, nosso olhar poderá ficar fascinado com a construção das cenas e dos enquadramentos, extremamente discretos e bem elegantes, sem ostentação – vale dizer: a serviço da criação e manutenção dos climas pertinentes para a história que está sendo apresentada. Raras vezes encontramos tomadas de interiores tão arquitetônicas na distribuição dos atores em relação ao ambiente e cenário íntimo que vai se mostrando, sem obviedades nem exageros, algo sufocante; e movimentos de câmera tão envolventes a ponto de quase não serem notados – porque a serviço da forma condizente com o desenrolar dos episódios e sua dramaturgia.



A tela larga é utilizada como poucas vezes, parte integrante do desenvolvimento do filme, jamais como um mero “espaço maior” a ser ocupado para saturar a imagem, mas, sim, como um formato que se torna inerente à narrativa, nunca explicitamente, mas o tempo todo ocupado de modo a transmitir a restrição ao pensar e viver, sutilmente claustrofóbico. A trilha musical, embora nem sempre tão discreta quanto as competentíssimas tomadas de cena, é eficiente para a criação dos climas emocionais e mesmo melodramáticos pretendidos. Mas que melodrama de classe o filme oferece à platéia !



Da mesma forma, a fotografia traz uma paleta de tonalidades diversas que é capaz de - por exemplo - sugerir o contraste entre cenas de rua (mesmo vazias) em cores “quentes”, “outonais” - e interiores, como o de um bar onde o espião vai beber, mostrado em tons “frios”, azulados.



Não se pode louvar o filme sem considerar a colaboração inestimável do desempenho magistral de Ulrich Muehe (falecido em julho de 2007) no papel do espião que violenta a intimidade alheia e que vai cair na armadilha de ficar fascinado com “a vida dos outros” - já que sua própria vida se resume em comida fria regada a molho industrializado... e de sexo com prostitutas disponíveis em horários marcados (e respeitados) de forma rígida e burocrática. Como será se defrontar com o amor transbordante entre duas outras pessoas, escutando a música que eles escutam, lendo os livros (poesias de Brecht) que eles lêem - e ouvir os gemidos de prazer sexual de um casal que se ama?



A caracterização que o ator dá ao personagem implica em uma impressionante capacidade de expressar o que está totalmente interiorizado na medida em que a opção foi a de compor o diligente vigilante à escuta com um semblante imutável, frio, quase o rosto sem mímica de uma espécie de “vampiro” que se alimenta de vidas alheias, para destruí-las. Ou não.



A questão do método científico de observação que não mais se acredita como “isenta” (na medida em que a presença do observador sempre interfere no campo do que está sendo observado) é desenvolvida em lances criativos – e mesmo desconcertantes: quando se espera que não vá haver nenhuma interferência, alguma coisa na atitude que o espião opta por tomar faz com que ele queira modificar, intencional e quase ostensivamente, o suceder dos fatos. Quem sabe, a tentação de ser uma outra espécie de “dramaturgo-deus”, diferente do homem que ele está espionando: pois mexer, por trás dos panos, com a "vida dos outros" seria como “escrever” no espaço real, fora dos palcos (o espaço do observador obsceno que se quer onisciente e onipotente).



O quanto sua interferência será efetiva ou ineficaz? Como as tentativas de controle do que acontece aos outros podem ser "bem sucedidas" quando se defrontam com as reações imponderáveis e os impulsos imprevisíveis dos seres humanos que não cabem em modelos pré-formados? É mesmo possível tal controle de modo absoluto? Cabe ao espectador descobrir na "resolução" da trama e no desfecho – aliás, emocionante, ainda que sem derramamentos.



Em algum momento do filme alguém cita uma frase (atribuída posteriormente a Stalin) dizendo que “os artistas são os engenheiros das almas” – ou seja, uma visão de que a arte deveria “fazer as cabeças” das pessoas, valorizando assim a chamada arte “engajada” – em detrimento da arte como um todo e não necessariamente didática e “política”. Cabe a ironia da hipótese: mais do que uma “engenharia” pretendida haveria espaço para uma “reengenharia” (não planejada) de almas confrontadas com o acaso trazido por "personagens" que não seguem nenhum script pré-determinado?



Ainda cabe destacar os desempenhos de Sebastian Koch no papel do dramaturgo vaidoso, assim como o de Ulrich Tukur como o superior do espião (este ator também esteve em Amém, de Costa-Gavras, e no inexplicavelmente inédito comercialmente no Brasil Taking Sides (intitulado O Caso Furtwangler na França), de István Szabó.

Martina Kedeck enfrenta o difícil papel da atriz que namora o escritor. Ela pode ser reconhecida pelos que assistiram Simplesmente Marta, de 2001, quando fez uma chef de cuisine germanicamente obsessiva, mas disturbada pelo ajudante italiano Sergio Castellito. Este filme foi lamentavelmente refeito pelo cinema americano, com Caterina Zetta-Jones e Aaron Eckhart. O pior é que já está prevista uma refilmagem de A Vida dos Outros para 2010! Por que isto, se A Vida dos Outros é um dos filmes recentes mais realizados no sentido de metas pretendidas e resultados alcançados?



Além do Oscar deste ano como melhor filme em língua não-inglesa, conta com mais 40 prêmios internacionais, seja em Londres, Varsóvia, Montreal, Copenhague, Locarno – e em seu país de origem. Especialmente para a fotografia, montagem, ator principal - e para a direção e roteiro de Von Donnersmarck naquele que é – surpreendentemente – seu primeiro longa-metragem, praticamente sua obra de conclusão do Hochschule fuer Fernsehen und Filmcurso de Munique que já havia terminado cinco anos antes como o estudante mais premiado em festivais de curtas.



# A VIDA DOS OUTROS (DAS LEBEN DER ANDEREN)

Alemanha, 2006

Direção e Roteiro: FLORIAN HENCKEL VON DONNERSMARCK

Fotografia: HAGEN BOGDNANSKI

Montagem: PATRICIA ROMMEL

Direção de Arte CHRISTIANE ROTHE

Música: STÉFANE MOUCHA e GABRIEL YARED

Elenco: ULRICH MUEHE, SEBASTIAN KOCH, MARTINA KEDECK, ULRICH TUKUR, THOMAS THIEME.

Duração: 137 minutos

Site oficial: http://www.sonyclassics.com/thelivesofothers/

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