Críticas


ELIS E TOM, SÓ TINHA DE SER COM VOCÊ

De: ROBERTO DE OLIVEIRA e JOM TOB AZULAY
Com: ELIS REGINA, TOM JOBIM, CESAR CAMARGO MARIANO
21.09.2023
Por Luiz Fernando Gallego
O filme acaba sendo até melhor do que o famoso disco por selecionar aqueles que são realmente os melhores momentos da cantora em melodias de Tom

Não deixa de ser interessante constatar que não foram incluídas no filme Elis e Tom, só tinha que ser com você” as faixas de canções mais típicas da “bossa-nova de raiz” cantadas por ela no famoso disco abordado neste ótimo documentário. A única exceção é aquela que dá subtítulo ao filme (“Só tinha de ser com você”) - além do óbvio dueto de “Águas de Março” (que já não é BN de fato conforme as composições de Tom a partir do disco “Matita Perê”, de 1973, em diante).

A seleção das músicas no filme privilegiou várias canções “de câmera” de Jobim: “Modinha”, “O que tinha de ser”, “Por toda minha vida”, “Soneto da Separação” - e mesmo uma espécie de bossa nova tardia, “Pois é” – parceria de Tom com Chico Buarque – tem mais melancolia do que a leveza do estilo inaugurado com “Desafinado” e “Chega de saudade”. Outra da dupla Tom e Chico, “Retrato em Branco e preto” é interpretada por ela (conforme o arranjo) com mais dramaticidade operística.

Mas o fato é que a exclusão dos standards bossanovistas faz todo o sentido: Elis nunca foi uma cantora de bossa nova, não gostava de cantar BN e ficou bem irritada ao ter que acompanhar de improviso Hermeto Pascoal no 13º Festival de Jazz de Montreux quando o bruxo puxou “Garota de Ipanema”, canção que ela jurara nunca cantar. Aliás, o disco desta apresentação havia sido interditado por ela, só sendo lançado após sua morte.

Por mais que “Elis & Tom” seja um disco-monstro-sagrado, cabe assinalar que as canções bossa-novistas ali incluídas não são o melhor do álbum - a despeito do conjunto de excelentes músicos que a acompanhavam na época: as inovações em “Brigas, nunca mais” e “Fotografia” (um equívoco este arranjo de Cesar Mariano) não entrariam numa antologia, sendo que em “Triste” ela e César se saem melhor, ainda que sem algum brilho especial - e mesmo “Só tinha que ser com você” não sai melhor do que o registro original de Tom no antológico disco “Caymmi visita Tom”.

Claro que não caberia Elis - e César - regravarem canções tão conhecidas do mesmo modo que foram lançadas, mas o fato (dito no filme) é que Elis não se sentia mesmo bem em “baixar” o tom exaltado que gostava de usar, com a voz "para fora" - ao contrário do intimismo joãogilbertiano. O que se nota especialmente na faixa “Corcovado”, outra ausente do filme, e com razão.

Está claro que sou voz discordante sobre a “perfeição” alardeada deste disco. Mas quando Elis canta as canções quase clássicas de Tom, só com o compositor ao piano ou seguindo o antigo arranjo que ele fez para Elizete Cardoso na gravação original de sua “Modinha”, o disco - e o filme - trazem grandes e emocionantes momentos. Na verdade, o doc ajuda a matar saudade desses dois nomes tão marcantes de nossa música e emociona mesmo muitas vezes, já tendo nascido como um documentário histórico.

Algumas polêmicas já são conhecidas, outras surgem nos depoimentos e podem dar o que falar: 1) Tom achava inicialmente que o projeto seria de um disco DELE - com Elis, quando a gravadora estava investindo num disco DE ELIS - com participação de luxo do maestro, o que levou a reações nada simpáticas do “homenageado” à presença de César como arranjador dominante para o “som de Elis”. E, pelas faixas excluídas no filme, não dá para não dar razão ao compositor, ainda que a forma usada para reclamar tenha sido bastante hostil ao arranjador-marido da cantora.

2) O diretor do filme (e na época agente de Elis), Roberto de Oliveira, menciona que a ideia do até então improvável encontro de Tom com Elis tinha - também - por objetivo melhorar a imagem da cantora após sua malfadada participação nas “Olimpíadas do Exército” de 1972. A presença de Elis no evento glorificador do Exército que estava no poder ditatorial, mais tarde, teve a alegada justificativa de ameaças do regime militar à cantora e sua família. Oliveira não menciona nada neste sentido, aludindo apenas e brevemente ao empresário de Elis antes dele - e ao fato dela fazer três shows por semana (?)...

3) André Midani fala da morte de Elis como suicídio em vez da versão consagrada de uma overdose acidental.

4) A implicância de Tom com a presença de guitarra elétrica no conjunto faz lembrar que Elis foi incentivadora de uma também malfadada “passeata contra a guitarra elétrica” à qual, por devoção a Elis, até Gilberto Gil aderiu, ainda que em processo de gestação de “Domingo no Parque” que lançaria acompanhado dos roqueiros “Mutantes” com guitarra e tudo. Mas à qual não aderiu Caetano - que conta ter achado aquela passeata com cara de coisa fascista a partir de uma observação de Nara Leão, desafeto de Elis sem motivo algum.

Mas, desde o casamento anterior, com Ronaldo Bôscoli, Elis foi amaciando sua ojeriza à guitarra e... a Tom Jobim – que a rejeitara na produção do disco com as músicas da peça “Pobre Menina Rica” muitos anos antes (por mais que Tom saísse de banda quando lhe perguntavam a respeito – como aprece no filme). No disco de 1968, o primeiro que ela gravou após o casamento com Bôscoli - e certamente induzida por ele – Elis registrou um pupurri de músicas de Tom numa faixa chamada “Tributo a Tom Jobim” (com “Wave”, “Fotografia” e “Outra Vez”). Em turnês no exterior ela não pôde deixar de gravar Tom (novamente “Wave”) em dois discos feitos em 1969, em Londres e na Suécia, visando público estrangeiro.

O filme idealiza o disco como tendo mudado alguma coisa nas interpretações posteriores de Elis, o que não aconteceu. Para tal basta escutar outro disco (solo) do mesmo ano de 1974: ela pode até ter gravado “Na Batucada da Vida”, de Ary Barroso, que Tom lhe apresentou (como se vê no filme), mas neste mesmo disco ela canta “O Compositor me disse” que Gil fez para ela com um recado sobre a afetação em muitas de suas interpretações. Entretanto, como o próprio Gil iria comentar, ela cantou exatamente como fazia neste período de sua carreira, sem seguir o que ele propunha na letra. Para não falar de como ela regravou “Travessia” com as sílabas da letra escandidas, mostrando que firmava a sílaba certa na nota musical certa... de modo muito artificial.

O filme acaba sendo até melhor do que o famoso disco por trazer imagens duas figuras importantíssimas de nossa história musical e selecionar aqueles que são realmente os melhores momentos da cantora ao investir em melodias de Tom, mas – exceto pelo consagrado dueto de “Águas de Março” – o que fica claro é que Elis e Tom eram água e azeite que não dava tão boa mistura como a unanimidade mitificou.


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Outros comentários
    5323
  • MARIA CÉLIA
    21.09.2023 às 21:55

    Gostei muitíssimo do texto, da crítica. Sobretudo por que joga luz sobre fatos que, como leitora e amante da voz, da interpretação e da bossa de Elis Regina, eu não imaginava. Sobre o Festival de Montreux, Elis estava no auge - sua voz e interpretação divinas envolveram o público que delirava numa energia contagiante. Lindo ! Lindo ! O álbum com dois discos de vinil guardo até hoje e vez por outra ainda escuto, embora se possa hoje rever o Festival quantas vezes se quiser, pelo YouTube. 22/09 - 00:54
  • 5324
  • Solange Ferreira da Silva
    22.09.2023 às 16:24

    Elis e Tom é um álbum especialíssimo sim. Estamos falando de uma momento especial, onde Elis acertadamente escolhe o que deve cantar. A obra estava a seu dispor ela é a intérprete. Portanto bato palmas para o o belo álbum. Elis continuará sendo sempre a melhor. Quem fala o contrário precisa beber mais na fonte da Boa música.