Atenção: o texto contém pequenos spoilers para aqueles que porventura não estejam familiarizados com a tragédia dos Andes.
Por detrás da armadura transparente da impossível (e talvez nem mesmo desejável) imparcialidade total, os críticos de cinema, como quaisquer outros amantes da arte, são atravessados pelas suas paixões. Temas que despertam certo fascínio inexplicável, gêneros pelos quais temos um apreço especial (e outros que não nos despertam o mesmo interesse), autores que parecem falar diretamente para nós (e aqueles com os quais qualquer comunicação soa difícil). Somos, apesar do interdito da exposição, pessoas. Nosso trabalho é justamente tentar traduzir em elementos mais ou menos pragmáticos uma experiência que, às vezes, é apenas de um arrebatamento mudo. Ou de completa desconexão. Ter consciência das paixões que nos atravessam, se não nos imbui de qualquer autoridade sobre os filmes que as abordam, é essencial para tentar compreender nossa reação (seja de extrema empolgação ou enorme repulsa) a eles. Os temas que nos apaixonam compõem nosso imaginário mais íntimo. Sobre eles nunca escrevemos a distância, mas talvez seja justamente sobre eles que devemos escrever com maior diligência.
Há mais de duas décadas, desde a primeira vez em que ouvi essa narrativa, ela me comove. Um time de rúgbi semiprofissional, de um país pequeno, nosso vizinho, o Uruguai, freta um avião para um jogo amistoso no Chile. É outubro de 1972 e alguns dos muito jovens jogadores levam membros da família. O pequeno avião atravessa a Cordilheira dos Andes e se choca contra os picos. Alguns dos passageiros e todos os tripulantes morrem no acidente ou na primeira gélida noite que o segue. Os jovens que sobrevivem a essas primeiras horas de tortura, quase todos garotos de vinte e poucos anos de famílias abastadas da capital uruguaia, muitos dos quais nunca tinham visto neve ou passado muito tempo longe dos pais, se veem no meio da cordilheira, sem comida e sem roupas apropriadas, entre mortos e feridos, numa situação de completo isolamento. Sozinhos e desesperados, eles não sabem que serão personagens daquela que é divulgada como a maior história de sobrevivência do século XX, fato histórico que completou 50 anos em 2022.
É difícil ser latino-americano e nunca ter ao menos ouvido falar nesta história, em geral através do seu elemento nevrálgico: o fato de que os sobreviventes precisaram recorrer ao canibalismo para não morrerem de fome nos longos 72 dias que passaram perdidos neste ambiente glacial, em que a desidratação e a perda de nutrientes é consideravelmente mais intensa. O evento rendeu duas transposições para o cinema ainda no século XX: o mexicano Sobreviventes do Andes, de 1976, dirigido por René Cardona e que, malgrado tenha sido lançado à proximidade da tragédia, foi paulatinamente esquecido e engolfado pela espetaculosa versão americana. Vivos, de 1993, dirigido por Frank Marshall e estrelado por um muito jovem Ethan Hawke, um sucesso de público, é um filme manipulativo, que adiciona elementos ainda mais trágicos ao evento (algo absolutamente desnecessário num cenário como esse) e constrói uma ideia de heroísmo individual que conflita com a realidade da sobrevivência do grupo como ação evidentemente coletiva – fato que todos os sobreviventes ressaltam em suas muitas entrevistas e seus diversos livros explorando todos os vieses possíveis do caso (dos quais se destaca, pela candidez com que trata o tema, Milagre nos Andes, de Nando Parrado e Vincent Rause). Vivos levou o famoso crítico americano Rober Ebert a asseverar: “Há algumas histórias que você simplesmente não pode contar. A história dos sobreviventes dos Andes pode ser uma delas”. “Nenhum filme pode abarcar a enormidade desta experiência”, ele completou, quando da estreia.
Talvez Ebert tenha uma certa razão. No entanto, a versão do espanhol J. A. Bayona, escrita por ele ao lado de quatro outros roteiristas e baseada no livro homônimo de Pablo Vierci, produção da Netflix, é muito mais ousada em sua construção narrativa, recusando-se a seguir pelo caminho mais fácil, opção de Marshall: dar protagonismo a Nando Parrado, aquele cuja trajetória se presta com maior exatidão à jornada do herói clássico. Único filho homem de uma família que conquistara a ascensão social às custas de muito trabalho, Nando perde a mãe e a irmã mais nova na tragédia e fica obcecado com a ideia de caminhar para encontrar ajuda. Além disso, por conta de uma pancada durante a queda, ele passa os primeiros dias depois do acidente inteiramente inconsciente, despertando numa espécie de ressurreição. Todos esses elementos fizeram com que a história tenha sido mais frequentemente recontada através da perspectiva de Nando, hoje em dia uma personalidade do Uruguai, empresário e piloto de corridas aposentado convertido em palestrante motivacional, sempre aparecendo publicamente com um invejável ar de tranquilidade e modéstia. Nando, no entanto, está longe de ser o personagem central do filme de Bayona, e o espectador mais familiarizado com a trama deve estranhar sua prolongada ausência, em especial no terço inicial do filme.
O longa-metragem não tem exatamente um protagonista, retratando o grupo de garotos quase como um organismo único que luta contra a montanha. Há, no entanto, um narrador, personagem-refletor, através dos olhos de quem a trama é contada: Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), um dos jovens mais hesitantes e amedrontados do grupo. Essa inteligente opção faz com que a identificação do público com a narração seja tanto maior, já que a maioria de nós, se nos imaginarmos em tal situação, certamente teremos grande dificuldade, se estivermos sendo honestos, de nos vermos como heróis. Aos poucos, à medida que o drama pessoal de Numa vai se desenrolando, a escolha se potencializa, ganhando uma dimensão ainda mais ousada e tocante.
De modo geral, os jovens atores do elenco, em sua maioria uruguaios e argentinos, estão bem em seus papéis. Aqui cabe notar o ganho imenso que é ter a tragédia se desenrolando na língua em que ela foi sofrida (e lembrar que, em uma incursão anterior do diretor no gênero “ser humano contra a natureza implacável”, O impossível, de 2012, Bayona havia convertido a família espanhola que viveu o drama real em norte-americana). Neste A sociedade da neve, as condensações de eventos e pequenas liberdades com relação à história real são perfeitamente condizentes com a necessidade de manter a clareza a respeito de um evento tão cheio de reviravoltas traumáticas e não alongar demais a duração do filme, que não cansa com seus 143 minutos. São tantas as pequenas tragédias englobadas da catástrofe maior que não é de estranhar que a sala de cinema, em geral agitada em filmes de luta pela sobrevivência em território inóspito, se torne paulatinamente silenciosa durante a exibição, com um ar de incredulidade pairando. Algumas sequências podem parecer construídas para propósitos dramáticos por aqueles não familiarizados com a tragédia, como o famoso momento em que os jovens conseguem consertar um rádio e acabam ouvindo numa estação a notícia da interrupção das buscas pelo avião desaparecido, com o locutor informando que todos os membros do time são dados como mortos, passagem encenada com grande impacto nesta versão.
O uso recorrente da liturgia católica para marcar a união entre o time e o ritual do consumo de carne humana não parece gratuito, já que estamos diante de um grupo de garotos muito católicos (o time em questão se chamava, afinal, Old Christians). A trilha sonora é aqui e ali um tanto exagerada, mas em geral correta. As pequenas participações e cameos dos verdadeiros sobreviventes são tocantes, em especial o momento em que Carlitos Paez interpreta o próprio pai, o famoso artista uruguaio Carlos Páez Vilaró, criador da Casapueblo. Por fim, talvez porque se trate de um evento já muito carregado em tintas, a direção de Bayona não comete os mesmos excessos de O impossível, construindo uma versão cinematográfica que, se não abarca a enormidade de um acontecimento tão dramático, é ao menos fiel ao espírito evidente nas muitas narrativas orais e literárias daqueles que o vivenciaram e tiveram a força e a sorte de sobreviver para recontar.