Críticas


DIAS PERFEITOS

De: Wim Wenders
Com: Koji Yakusho, Min Tanaka
29.02.2024
Por Luiz Baez
As noites do proletário

Há quase cinco décadas, era fundada em Berlim, capital da Alemanha, a produtora Road Movies, cujo nome – traduzido literalmente como “filmes de estrada” – não poderia melhor sintetizar seu projeto artístico. Na maior parte destas mais de cem obras, para além de cenários, as distâncias percorridas – antes interiores do que exteriores – oferecem oportunidade de reflexão dialógica aos seus personagens. Não se trata, portanto, de um destino ao qual se deve chegar, mas das transformações enfrentadas ao longo do percurso. É este também o caso de Dias perfeitos, novo longa-metragem de Wim Wenders, que, embora não assinado pela mencionada produtora, dá continuidade à sua tradição cinematográfica.

Em dimensão narrativa, o automóvel conduz o protagonista, Hirayama (Kôji Yakusho), pelas estradas de Tóquio, onde limpa banheiros públicos. Resistente ao tempo acelerado da metrópole, o veículo – tal qual seu motorista – conserva um rádio de fitas cassete, que reproduz um conjunto de músicas do século passado. Sua coleção, como descobre de um colega mais jovem, vale uma verdadeira fortuna – o mercado, afinal, incorporou a nostalgia de outro tempo –, mas o valor que o personagem lhes atribui é sobretudo simbólico. Entremeada em sua rotina quase imutável, a arte enseja a ruptura.

Todos os dias Hirayama acorda, se levanta e dobra o colchão em seu quarto, não muito maior que os banheiros por ele limpos. Em seguida, lava o rosto e escova os dentes na pia da cozinha, a única do apartamento. Rega cuidadosamente suas mudas, compra café em uma máquina de vendas e dirige para o trabalho. Ao fim do expediente, toma banho na mesma ducha comunitária e assiste às partidas de seu time no mesmo bar. A noite é a exceção, quando se permite vislumbrar outros possíveis: “o mundo é formado por muitos mundos”, ensina à sobrinha. Sempre lê um novo livro, que compra no sebo local, e sonha em preto e branco.

Tais imagens acromáticas, dotadas de significado, remetem aos seus intervalos de descanso, que ele aproveita para capturar cúpulas de árvores com uma câmera analógica. Os planos e contraplanos mostram, de baixo para cima, a natureza realçada em sua grandiosidade e, de cima para baixo, o homem agradecido por testemunhá-la. À noite, quando essas luzes e sombras retornam e se sobrepõem, estabelecem metonímia com o próprio papel da arte. Hirayama sonha em preto e branco, como as suas fotografias. Isto é, Hirayama sonha com a arte. Invisível ou, na pior das hipóteses, discriminado durante o dia – logo na ambientação inicial, uma mãe limpa as mãos do filho com lenços umedecidos após contato com o protagonista –, sua emancipação é estética.

Um risco de tal abordagem seria, é claro, ignorar a materialidade ou apaziguar o conflito. A esse respeito, a sequência final não só propõe uma resposta – ou melhor, mais questões –, mas também guarda uma sabedoria trágica que a insere, desde já, entre as mais marcantes da vasta filmografia de Wim Wenders. Em interpretação que praticamente dispensa diálogos e lhe rendeu o prêmio de melhor ator no último Festival de Cannes, sentimentos confundem-se enquanto Kôji Yakusho dirige ao som de Feeling Good. Depois de duas lembranças da finitude, o protagonista se cinde entre a celebração dos pequenos prazeres muitas vezes pueris e a tristeza de um sentido ausente. Humano, demasiado humano.


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