Críticas


UMA CERTA TENDÊNCIA DA SELEÇÃO DA MOSTRA

29.10.2023
Por Maria Caú
Cinco filmes sobre mulheres e rituais de passagem na edição deste ano

À medida que os dias correm na programação dos festivais, muitas vezes é possível observar certas convergências temáticas entre os filmes. Na seleção da Mostra Internacional de São Paulo deste ano, por exemplo, pululam os longas que se dedicam a explorar rituais de passagem nas jornadas de mulheres jovens. São personagens que buscam seu lugar no mundo e, a partir de uma situação de opressão ou trauma, sentem uma desconexão profunda com o universo que as cerca. Essas mulheres seguem, todas elas, uma trajetória de transformação (em alguns casos mais radical do que em outros), da qual emergem mais confiantes e empoderadas, assumindo por fim as rédeas do próprio destino. Todas essas obras são dirigidas por mulheres e representam um apanhado interessante, já que todos os títulos são de países distintos, três dos quais nações cujas cinematografias têm reduzida presença internacional (Malásia, Holanda, Suíça). São elas:

- Tiger Stripes (Malásia, em coprodução com diversos outros países, dirigido por Amanda Nell Eu): O filme malaio corre como um dos queridinhos dos críticos presentes nesta edição da mostra. Longa-metragem de estreia da diretora, ele venceu o Grande Prêmio na Semana da Crítica de Cannes. Mistura de Carrie, a estranha (Brian De Palma, 1976) com Raw (Julia Ducournau, 2016), o filme segue Zaffan (Zafreen Zairizal, em ótima atuação), uma menina questionadora que, presa no ambiente de extrema vigilância sobre o corpo feminino que é a cultura mulçumana, sofre uma espécie de arrebatamento a partir da experiência da menarca e perde o controle do próprio corpo, que passa a sucumbir às suas urgências ocultas, para o espanto de todos aqueles à sua volta, mas especialmente das colegas de classe. O filme tematiza a primeira menstruação no contexto do cinema de horror, para o qual este evento da vida das mulheres cisgêneras se presta muitíssimo bem. A originalidade do longa vem de sua ambientação, mais do que dos temas ou das alegorias propostos por ele, que já foram utilizados pelo cinema de gênero diversas vezes antes. De fato, o tema da mulher liberada como um monstro aos olhos da sociedade tem emergido em diversos filmes recentes do cinema de horror, notadamente em Pobres criaturas, dirigido por Yorgos Lanthimos, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza deste ano. Em Tiger Stripes, o desenvolvimento aqui e ali vacila, mas o caldeirão de referências do filme, que compõe um retrato de uma civilização com costumes extremamente arcaicos, mas que acessa as modernidades do mundo hiperconectado, chama atenção, sendo o ponto alto dessa disjunção a cena de uma espécie de exorcismo com transmissão direta para as redes sociais;

- Seu Hobby (Coreia do Sul, dirigido por Ha Myung-mi): Também encaixado no cinema de gênero, este thriller coreano acompanha o retorno de Jeong-in à sua cidade natal, um povoado rural isolado, após fugir de um marido abusivo. Acontece que o vilarejo é um ambiente muito opressor (e mesmo evidentemente perigoso) para uma mulher que vive sozinha, e diversas vezes as mulheres mais velhas do local aconselham a jovem a pedir perdão ao esposo e retomar seu casamento, assumindo o papel que lhe cabe naquela estrutura social. Tentando se estabelecer nesse ambiente, a protagonista se surpreende com a presença de uma vizinha, uma mulher jovem com um passado misterioso, que se muda para a casa mais portentosa da região. Essas duas mulheres podem ser vistas como dois estágios do processo de empoderamento de uma mesma mulher e o filme tematiza esse espelhamento de forma instigante. Ainda assim, incomodam um reiterado maniqueísmo e certa repetição de situações dramáticas;

- Holly (Holanda/ Bélgica/ Luxemburgo, dirigido por Fien Troch): Ainda acenando para o cinema de gênero, temos aqui uma das premissas mais instigantes da mostra. Holly, uma menina de quinze anos, que, tal qual a personagem de Tiger Stripes, sofre bullying no colégio, um dia telefona para a instituição e diz que não poderá comparecer à aula, pois sente que naquela data “coisas ruins vão acontecer”. Quando um enorme incêndio toma conta da escola, vitimando alguns alunos, Holly começa a ser vista pela comunidade como uma espécie de vidente (aqui temos talvez um jogo entre o nome da protagonista, Holly, e palavra holy, santo ou sagrado, em inglês). A partir deste evento, a jovem passa a ajudar algumas pessoas a lidarem com toda a sorte de lutos e, com isso, recebe benefícios financeiros e alcança um novo status social. Essa provocadora premissa, no entanto, resulta muito mal trabalhada, e o filme é sem dúvida o mais mal acabado dos cinco. Não se justifica o fato de que a narrativa se recusa a minimamente explicar o mundo interior de Holly (ela é uma charlatã perversa? uma jovem sensível, que é apenas capaz de exercitar uma empatia radical? alguém que usou de uma oportunidade do acaso e acabou por se corromper?). As cenas em que ela declara ter acesso aos sentimentos de pessoas falecidas soam deslocadas e truqueiras, dado o contexto e o fato de que o filme se recusa a retratar a jovem como uma pessoa mal intencionada ou mentirosa, mas também não logra explicar porque Holly tem acesso a pequenas informações íntimas sobre as famílias dos mortos. A sensação é de que, no afã por manter o mistério (sublinhado grosseiramente por uma trilha sonora opressiva), a diretora esqueceu de honrar o pacto tácito com o espectador;

- Névoa prateada (Reino Unido/ Holanda, dirigido por Sacha Polak): Mantendo o clima de tensão dos três filmes anteriores, mas passando para o drama de base realista, temos este Névoa prateada, em que a enfermeira Franky (Vicky Knight), que até então só havia vivido relacionamentos heterossexuais, se apaixona por uma de suas pacientes, a problemática Florence (Esme Creed-Miles), que está internada por ter tentado o suicídio. As duas iniciam uma relação simbiótica e tóxica, cujo fracasso é prenunciado por uma solene declaração de Florence à namorada. Ela diz a Franky que a enfermeira deve saber de antemão que ela não é uma boa pessoa. O encontro entre as duas jovens acaba sendo uma viagem vertiginosa aos traumas do passado de ambas (Franky sobreviveu a um incêndio, possivelmente criminoso, quando era criança, tragédia que fez com que rompesse sua relação com o pai, já que culpa a madrasta pelo que lhe ocorreu; Florence, por sua vez, é uma jovem que cresceu longe dos pais e tem dificuldades em estabelecer laços duradouros e estáveis com aqueles que a cercam, além de exibir surtos de violência e autodestruição). O filme não agradou a boa parte do público da mostra, que o acusa de “tentar abraçar o mundo”, tratando de muitos temas a um só tempo (é bem verdade que, aqui e ali, o desenvolvimento patina e há momentos forçados). Ainda assim, o longa-metragem cativa por conta da tridimensionalidade de sua protagonista, que vai aos poucos rompendo sua forma autômata de viver o cotidiano (“névoa prateada” é também o nome de uma variedade de maconha, substância que parece ajudar Franky a lidar com seu dia a dia vazio). É mais um drama sobre a maneira como as pessoas LGBTQIA+ precisam muitas vezes romper com suas famílias e eleger novos familiares em sua jornada de autoaceitação;

- O amor do mundo (Suíça/ Portugal/ França, dirigido por Jenna Hasse): O mais leve dos cinco filmes deste recorte é também possivelmente o mais esquecível, trazendo a sensação de uma narrativa já vista muitas vezes antes, ainda que conduzida de forma muito competente pela diretora, Jenna Hasse. Quem guia a trama é Margaux (Clarisse Moussa), uma adolescente que começa um estágio numa espécie de orfanato no Lago Geneva, na Suíça, local em que ela passa as férias de verão com o pai, um homem descendente de portugueses com quem não tem qualquer intimidade. Ali, Margaux conhece Juliette, uma menina de sete anos que, órfã de mãe e abandonada pelo pai, exibe um comportamento problemático e questionador; a jovem também se interessa por um pescador local, Joël, um homem na casa dos 30 anos que reconta suas viagens a países exóticos, nos quais ele trabalhara como mergulhador. O elemento mais interessante do filme é, sem dúvida, sua capacidade de converter um lugar claramente paradisíaco (a beleza da região é bem explorada pela fotografia, com uma luz dourada digna de cartão postal) em uma prisão da qual os três personagens centrais não conseguem escapar (Margaux se sente deslocada na cidade pacata; Juliette sonha com o retorno do pai; Joël se entedia com o trabalho, muito menos excitante do que suas aventuras anteriores). A relação entre Margaux e Juliette, outro jogo de espelhos entre mulheres em diferentes momentos da vida, traz alguns momentos altos para uma narrativa que certamente não prima pela originalidade. Cabe notar que a trilha conta com uma versão de Sem fantasia, canção de Chico Buarque, cantada pela protagonista com seu sotaque afrancesado, um belo apelo para a plateia brasileira.

Esse pequeno panorama mostra uma (talvez sutil) predileção temática no cinema contemporâneo dirigido por mulheres. Dentro desse recorte, é notável observar tramas com personagens femininas tão diversas e conflitos existenciais tão aprofundados. Numa seleção com um volume bastante considerável de filmes de diretoras, essas realizadoras buscam investigar como uma jovem mulher pode encontrar seu lugar no mundo e os percalços que enfrenta nesse caminho. Depois de vivermos na égide de um cinema inteiramente preocupado com as questões da existência masculina, uma repetição temática como esta não deixa de ser uma lufada de ar fresco.

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Outros comentários
    5328
  • Flaviofox M. Salles
    30.10.2023 às 20:23

    Boa noite, tomará poder assistir todos filmes nos cinemas ou streaming por aqui. Sempre que posso, que não foi o caso desse ano, escolho os filmes no Festival do Rio pela visão feminina. E posso como seu fiel seguidor, que quando falar de vários filmes. Coloque seus respectivos nomes no final. Vlw pelo chamado para cá!