A maneira seqüencial em que se desenvolve a própria experiência filmica encoraja a que do filme se espere uma forma narrativa, seja ela qual for. Tal coisa, como se sabe, nem sempre é possível. A construção não-narrativa, assim mesmo, costuma obedecer ela própria a uma lógica que, se decifrada, auxilia a compreensão do que se imagina que deva ser compreendido. Se nossa mente nasce figurativa, ou é contaminada ao longo da vida por essa necessidade, isso é um problema nosso. Pessoalmente, não gostaria de recomendar, como medicamento de combate a essa lógica, doses eventuais de ácido lisérgico - mas não há como negar que Ginsberg e Borroughs melhoraram um pouco o mundo depois que o fizeram.
Império dos Sonhos não é nem um pouco lisérgico – não pelo menos da forma pela qual filmes estúpidos como Across the Universe entendem o fenômeno - mas é livre. Uma investigação bastante ampla sobre a liberdade narrativa – o que não é original, vista sob a ótica de Brakhage ou Deren, por exemplo, mas que simplesmente alimenta o desapreço que o espectador deve ter (pode ter seria mais apropriado) por formas narrativas pré-existentes. O que diferencia Lynch dos percepcionistas é que este é um cineasta com uma vasta bagagem narrativa. Filmes que lidam com o inconsciente, como Veludo Azul ou Cidade dos Sonhos, para não falar do primeiro de todos, Erasehead, onde a viagem ao inconsciente está explicitamente indicada na trama, mas o fazem como um meio para a construção de um cinema mais formal.
Império dos Sonhos é, em oposição, uma viagem que nunca termina. Sua construção encontra uma boa analogia numa viagem que quase todos conhecem, tenham ou não seguido os conselhos de Ginsberg: a viagem do sonho. As chaves para isso estão por toda parte: Nikki Grace (Laura Dern), a protagonista do filme, é protagonista e espectadora de suas ações simultaneamente; ali, presente, passado e futuro não se intercalam, mas representam a mesma coisa e ao mesmo tempo coisas completamente diferentes. “Representam”, aliás, seria a palavra menos adequada a utilizar, num filme que fala o tempo todo em representação, ocorre durante a rodagem de outro filme (que eventualmente é o mesmo ou já foi rodado há muito tempo) mas que entrega ao espectador um material abstrato, inacabado, matéria-prima para a sua elaboração.
O que diferencia Lynch de Kandisnsky, neste particular, é a forma pela qual o cineasta dá a sua pincelada. A elaboração de seus planos explode nos limites da sofisticação. Flutua entre o minimalismo da forma (o spot inicial, revelando a projeção de um filme já registrado, a agulha de um vitrola repousando sobre o disco que roda e faz dele emergir sons também já registrados) e o mergulho sobre a capacidade do ser humano de ser assustador com o uso unicamente da expressão ou da palavra.
Duas cenas excepcionais dão o tom a essas pinceladas. Numa delas, uma polonesa sinistra (Grace Zabriskie) leva uma lenda, ou maldição, à mansão de Nikki, que espera a chance de fazer seu novo filme. Em outra, a grotesca apresentadora de um programa televisivo de fofocas (Diane Ladd, mãe de Laura Dern), insinua um futuro caso entre a atriz e seu par romântico Devon (Justin Theroux). Tentar descobrir se esse caso de fato existe não está exatamente no espírito do que o autor está propondo aos seus espectadores. É como tentar achar a árvore que se esconde no quadro de Kandisnky.
O que Lynch nos propõe (e torna possível em tão larga escala graças à tecnologia digital que barateia a ousadia) é uma experiência de imagens, sensações, narrativas ocultas. O que ele nos fornece não é uma narrativa capaz de ser entendida à luz do repertório que o cinema nos possibilitou, mas um punhado de retalhos que nos fazem construir a nossa própria narrativa – que, dessa mesma perspectiva, não tem a obrigação de fazer qualquer sentido. Quem algum dia sonhou, ou seguiu a sugestão dos beatniks, sabe do que estou falando.
# IMPÉRIO DOS SONHOS (Inland Empire)
EUA, França, Polônia, 2006
Direção, Roteiro, Fotografia e Montagem: DAVID LYNCH
Música: DEAN HURLEY
Elenco: LAURA DERN, JEREMY IRONS, JUSTIN THEROUX
Duração: 172 minutos