Críticas


O DIA QUE TE CONHECI

De: André Novais Oliveira
Com: Renato Novaes, Grace Passô
01.10.2024
Por Maria Caú
A naturalização radical dos transtornos mentais num filme sobre paixão e encontro

Não há quem não perceba que a produtora mineira Filmes de Plástico vem fazendo alguns dos filmes brasileiros mais interessantes dos últimos anos, títulos como Marte um (Gabriel Martins, 2022) e Temporada, longa-metragem dirigido por André Novais Oliveira que foi o grande vencedor do Festival de Brasília de 2018. Neste trabalho anterior, Novais Oliveira já mostrava uma habilidade incomum para abordar temas densos numa narrativa enganosamente simples, fluida e até leve, construindo personagens que rapidamente afirmam sua tridimensionalidade, uma humanidade pulsante que transborda em poucos minutos de tela, e ambientes que o espectador parece adentrar com estranha familiaridade em poucos planos, ainda que os desconheça.

Assim é este O dia que te conheci, que mostra o encontro entre Zeca (Renato Novaes), funcionário da biblioteca de um colégio em Betim, município da região metropolitana de Belo Horizonte, e Luísa (Grace Passô), que trabalha na área administrativa do lugar e, na falta da funcionária encarregada de fazer as demissões, avisa a Zeca que ele perdeu o emprego por conta de seus atrasos constantes. Compadecida da situação do homem e interessada por ele, que, como ela, é uma das poucas pessoas negras que trabalha na instituição, Luísa oferece a Zeca uma carona no longo caminho de volta para casa. Ele aceita a gentileza. Aos poucos, os dois vão se abrindo um com o outro, numa conversa em que Zeca enfim expõe os motivos de sua dificuldade para cumprir o horário de trabalho. Aqui, o filme aborda os transtornos mentais do ponto de vista da naturalização radical, feito singular no contexto do cinema contemporâneo, que teima em abordar saúde mental apenas a partir de suas consequências mais extremadas. Tratar de depressão, ansiedade, tratamentos psiquiátricos e terapia com tanta fluência e leveza, numa conversa honesta e aberta, em que duas pessoas estão flertando, talvez tenha mais impacto em prol da desmistificação das questões de saúde mental do que as longas narrativas que exploram personagens com problemas psiquiátricos em sofrimento.

O longo diálogo entre Luísa e Zeca, inspirado e cheio de momentos hilariantes, mostra duas pessoas que querem se ouvir e constrói um romance que parte de uma escuta ativa e interessada (e há forma melhor de dar corpo a um amor?). Nos papéis centrais, Renato Novaes e Grace Passô estabelecem uma dinâmica divertida (ela é mais segura e assertiva, enquanto ele exibe um comportamento mais retraído) e a química entre os atores, aliada ao ótimo texto, garante a torcida do espectador pela concretização do flerte e revela, mais uma vez, uma direção de atores segura. É difícil que o espectador não passe a ver Luísa e Zeca quase como amigos, direcionando a esses personagens um carinho quase instantâneo, apesar de seus muitos defeitos (Zeca parece viver em constante desorganização, enquanto Luísa dá justificativas canhestras para não ter ajudado uma amiga íntima a passar por um momento de luto), ou mesmo por causa deles (já que compõem um retrato demasiado humano desses personagens). A direção de arte é muito bem-sucedida em estender essa estranha familiaridade à casa de Zeca, que parece um ambiente acolhedor, apesar da desorganização do bibliotecário.

O desfecho é perfeitamente condizente com o andamento da trama, mas ainda assim surpreende, já que o roteiro, assinado pelo realizador, opta pela beleza da simplicidade até o fim, sem aderir a grandes reviravoltas ou obstáculos repentinos, elementos típicos das comédias românticas. O dia que te conheci é certamente um desses filmes que têm o estranho e maravilhoso efeito de restaurar momentaneamente a fé do público nos encontros fortuitos da vida e na capacidade redentora da paixão genuína (não apenas a paixão romântica, mas a paixão que brota da capacidade de despertar para as muitas pequenas alegrias perdidas em meio à banalidade do cotidiano dos grandes centros urbanos).



Texto originalmente publicado durante a cobertura da Mostra de São Paulo 2023


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