O mais recente filme de Paul Verhoeven, A Espiã, pode ser visto, basicamente de dois modos.
Olhar Número Um (excesso): quem o assistir sem malícia encontrará um melodrama de guerra que pode até agradar um fã de histórias repletas de reviravoltas e que se deixe surpreender por não ter familiaridade com esse tipo de roteiro “esconde-esconde”. Ou pode satisfazer os que gostam de reencontrar antigos clichês que quase sempre funcionaram em filmes de espionagem nos quais o herói (ou heroína) vai se meter justamente na boca do lobo. (Neste caso, fariam melhor em aguardar o próximo de Ang Lee, Lust, Caution).
Olhar Número Dois (escassez): um olhar menos desarmado percebe (ou já sabe) que Verhoeven não tem nada de ingênuo quando finge que está narrando “à vera” (?) uma história tão intensamente repleta (vale o pleonasmo) de viradas rocambolescas destinadas a provocar surpresas (muitas nada surpreendentes - e outras tantas, inconvincentes). E que acaba lembrando uma das tramas descabeladas de ‘Pedro Camacho’, o inesquecível personagem criado por Mario Vargas Llosa para o romance Tia Julia e o Escrivinhador. Vale recordar que Camacho era um rádio-novelista capaz de deixar no chinelo a ex-famosa (real) Gloria Magadan dos dramalhões descerebrados com Yoná Maglhães na então inicial TV Globo de décadas atrás – ou mesmo suplantar os enredos mais antigos das novelas da nossa Rádio Nacional dos anos 1950.
Este espectador mais maldoso talvez saiba que Verhoeven é o responsável por sucessos como Instinto Selvagem, de 1992, e de fracassos como Tropas Estrelares apenas cinco anos depois. Em ambos, a manipulação da ambigüidade na abordagem de seus roteiros não se comprometia com nada, o que permitiu as mais diversas leituras - sendo que no caso do fracasso estrelar, houve acusação (mais ou menos considerável) de ‘fascista’, rebatida com argumentos (mais ou menos pertinentes) por seus exegetas. Afinal, Verhoeven fica mesmo no terreno indefinido do “mais ou menos” conceitual.
Entretanto, uma olhada nos títulos do diretor-roteirista não deixa dúvidas sobre seu "estilo" do tipo “mais”: atração pelo excesso e pelo escândalo, seja em cenas de violência que não negam fogo à escatologia, seja em cenas de sexo – de novo mais ou menos - explícito (especialmente nos filme holandeses com Rutger Hauer).
A Espiã não foge à escrita habitual do cineasta no terreno do mau gosto, incluindo baldes de excrementos à mostra - e logo jogados sobre alguém; e também mostra rostos esfacelados por tiros. Ainda que seja menos ousado no erotismo (até mesmo do que o célebre cruzar de pernas de Sharon Stone), não deixa de exibir o triângulo de pelos pubianos da atriz Carice van Houten sob a justificativa de que a personagem precisar pintá-los de louro para esconder sua origem judia e morena, caso seduza um graúdo nazista “pelos mais nobres fins”.
A guerra, com sua regressão vale-tudo no abandono das conquistas e valores éticos sempre almejados no processo civilizatório, serve bem ao empastelamento geral que insidiosamente Verhoeven coloca em seu filme. A resistência holandesa e suas possíveis contradições teria sido o ponto de partida para este enredo. Nada contra a revisão de “verdades estabelecidas” e de “histórias oficiais”: o problema é que Verhoeven manipula os fatos de seu roteiro de forma tal que uma possível seriedade de seus questionamentos resvala em seu lado “menos” (o da escassez): inconseqüência de estereótipos apenas enfeitados por sua capacidade artesanal nos enquadramentos e no ritmo, quase sempre envolvente. Ainda que neste filme, muita coisa derrape na duração (de novo) excessiva com (ainda) excesso de reviravoltas - que vão cansando e atingindo o descrédito, mesmo para os que se deixaram envolver.
Verhoeven confirma a impressão de que pretende aparecer quase sempre como um artífice da indefinição moral que visa uma iconoclastia ampla, geral e irrestrita, capaz de ultrapassar as barreiras do ceticismo para cair em um cinismo gratuito, empastelando valores que ele coloca em cheque sob a aparência de um filme de gênero repleto de clichês reciclados.
Pior para os que olharem o filme como entretenimento de aventuras inusitadas: os mais velhos talvez associem com um livrinho de bancas de jornais (‘pulp fiction’ nada ‘cult’) chamado Giselle, a Espiã Nua que abalou Paris na II Guerra. Bastava trocar o título para Rachel (ou Ellis), a Espiã Judia Nua que abalou Amsterdã na II Guerra. Ou basta o título original, Zwartboek que quer dizer “Livro Negro” – onde o nome de Verhoeven deve ser colocado doravante.
P.S.: Há tempos, o inacreditável Uma Luz na Escuridão (1992) misturava uma trama igualmente rocambolesca-inverossímil para Melanie Griffith e Michael Douglas em situações que chegavam a ser risíveis. É outra lembrança amarga que vem à cabeça do cinéfilo enquanto assiste, querendo sair no meio de A Espiã.
P.P.S.: UM DIÁLOGO (involuntariamente risível?) QUE PODE NÃO SER DO INTERESSE DE QUEM PRETENDE IR VER A Espiã:
UM CHEFÃO DA RESISTÊNCIA - "Até onde você iria pela nossa causa?”
A ESPIÃ – "Você está perguntando se eu treparia pela causa?"
O CHEFÃO – “Você é muito direta.”
(Pano Rápido - como dizia o Millôr)
# A ESPIÃ (ZWARTBOEK)
Holanda/Alemanha/Bélgica, 2006
Direção: PAUL VERHOEVEN
Roteiro: PAUL VERHOEVEN e GERARD SOETEMAN
Fotografia: KARL WALTER LINDENLAUB
Montagem: JOB TER BURG e JAMES HERBERT
Música: ANNE DUDLEY
Elenco: CARICE VAN HOUTEN, SEBASTIAN KOCH, THOM HOFFMAN, HALINA REIJN.
Duração: 145 minutos
Site oficial: http://www.sonyclassics.com/blackbook/