Em Estamos Bem Mesmo Sem Você, o diretor estreante Kim Rossi Stuart centra suas lentes em uma família desestruturada – basicamente, mas não só - pelas constantes idas-e-vindas da mãe (a atriz tcheca Barbora Bobulova) que volta e meia abandona o marido (interpretado pelo próprio diretor co-roteirista) e os filhos - que o pai cuida com desvelo mesclado a um rude temperamento explosivo.
Estão bem mesmo sem a mãe? As coisas se ajeitam, é claro. O pai ama os filhos, é claro. Mas o título brasileiro do filme é mais do que questionável (enquanto o título original Anche libero va bene se refere à tolerância conciliadora do filho em relação ao pai sobre a posição de jogador de futebol pretendida). Tão tantalizante quanto a mãe que tantas vezes já partiu e pediu para voltar e depois sumiu de novo - é o pai de pavio curto e incapaz (dentre outras incompetências) de respeitar as escolhas do filho que, por exemplo, preferiria estar em escolinha de futebol do que na de natação.
Na verdade, o casal pra lá de borderline se merece – mas não merece aqueles filhos mostrados como sensíveis, aparentemente adaptados, “tocando pra frente” e – no caso do menino Tommaso com seus 10, 11 anos apenas – eventualmente com mais capacidade de perceber que certas atitudes dos pais não vão dar certo. A aparente “maturidade” das crianças é altamente questionável, quase que já um “sintoma” na linha adaptativa (a que preço atual ou futuro?) sugerindo que a infância não está sendo vivida com o mínimo de pertinência à faixa etária e a seu estágio emocional correlato. Apesar do roteiro insistir nas tentativas das duas crianças em viver suas vidas "normalmente" com colegas da mesma idade na escola, na vizinhança e mesmo na bagunça caseira, o fantasma da ausência materna e da previsível imprevisibilidade de conduta do pai é o que domina: as crianças e o filme, de modo soturno.
É sobre Tommasino que o filme se detém mais e o pequeno ator Alessandro Morace cativa a platéia com incrível naturalidade nos diálogos e nas expressões faciais, até mesmo quando cala mais do que fala, dando a impressão que a platéia pode captar o que ele “pensa”. Sua irmã um pouco mais velha, vivida por Marta Nobili, também mostra sintonia com a personagem pré-púbere e já interessada em detalhes sexuais que ainda não entraram no campo prioritário de interesses do irmão menor. Aliás, todos os outros pequenos atores que aparecem episodicamente estão muito bem.
Outro destaque é o desempenho de Barbora Bobulova como a mãe doidivanas e superficialmente simpática em sua frivolidade: a atriz retrata bem a sinceridade da personagem quando pede para retornar ao convívio com a família, sua vontade de cuidar dos filhos e ficar ali. Ela aparece tão sincera para consigo mesma (auto-engano) como inconvincente para olhos que possam perceber tudo aquilo com mais distanciamento. Como os do menino. Seu temperamento com uma dose de humor um tanto eufórico sugere até um distúrbio de personalidade ciclotímica e incapaz de resistir aos impulsos. Divertida, sem dúvida. Inconsequente. Como também o pai. Uma das frases mais escutadas é "hoje não precisam ir à escola", lugar (dentre outros) para onde Tommasino vai se refugiar, longe da maluquice paterna.
O filme - e a atriz - têm uma ótima cena quando a mãe, abraçada a um dos filhos, fica em foco enquanto a câmera se aproxima dela, sugerindo a aproximação do marido, surpreso com seu retorno, em vez de focar a reação inicial dele. Infelizmente, certas qualidades de direção e as tentativas (frustras) do roteiro em não escorregar na pieguice não são suficientes para manter o interesse no filme que peca no ritmo e chega a chatear com os desmandos dos adultos, especialmente – e mais do que os da mulher – do pai, cujo personagem destemperado é tão ou mais insuportável para o espectador do que para os filhos graças à interpretação ainda mais exagerada do ator agora também cineasta, muito distante da sutileza e riqueza de sugestões do desempenho da atriz tcheca que vem fazendo boa carreira no cinema italiano. Não é porque o personagem é "extrovertido" que o ator precisaria incorrer em overacting canastrônico.
Não bastou tentar deixar o filme como uma obra “aberta” e que deixa “pontas soltas” de episódios que em roteiros de filmes americanos apareceriam como mais “concluídos” do que sugestivos ou climáticos. Tais esforços não conseguem excluir Estamos bem... do clima de melodramalhão: aliás, as andanças de Tommasino nas beiradas dos telhados chegam a soar gratuitas como se anunciassem a todo o momento um risco de desgraça novelesca. Como metáfora de que o menino anda “à beira do abismo” seria dispensável e banal. A cena final, por sua vez, “entrega” o quanto de melodrama piegas se tentou dissimular.
O drama (tragicamente verdadeiro e mais freqüente do que se imagina) de filhos que têm de ser “pais” de seus imaturos pais ainda fica merecendo uma abordagem menos passional do que esta espécie de (parente distante) Kramer versus Kramer à italiana com exageros mediterrâneos.
É curioso o lançamento simultâneo no Rio de dois filmes europeus, este e A Culpa é do Fidel, onde atores infantis são o que tais filmes têm de melhor, sendo que seus personagens são, ainda que de modo bem diverso, muito mal atendidos por pais sem mínima empatia para com as crianças. Com a ressalva de que no caso do filme italiano há uma pretensão de narrativa menos rotineira do que no francês, seja no formato do roteiro, seja nos cortes de cenas que não necessariamente “fecham” o que mostram como ambiência do menino em casa, na escola, nas ruas, etc. O risco é que a falta de empatia dos personagens adultos para com os das crianças se transmita à platéia que não tem mesmo como empatizar com pais tão tantalizantes.
# ESTAMOS BEM MESMO SEM VOCÊ (ANCHE LIBERO VA BENE)
Itália, Argentina, Austrália, Espanha, 2006
Direção: KIM ROSSI STUART
Roteiro: KIM ROSSI STUART, LINDA FERRI, FRANCESCO GIAMMUSO, FEDERICO STARNONE.
Fotografia: STEFANO VALIVENE
Montagem: MARCO SPOLETINI
Música: BANDA OSIRIS
Elenco: ALESSANDRO MORACE, BARBORA BOBULOVA, KIM ROSSI STUART, MARTA NOBILI.
Duração: 108 minutos