De certa forma o gênero “whodunit” parece estar voltando aos roteiros cinematográficos. Ainda em cartaz, Conclave trocou o “quem matou?” dos romances policiais de Agatha Christie pela questão “quem vai ser Papa?”. Ou: em vez de ‘quem vai ser a próxima vítima?” do “Caso das dez estatuetas” (título original impublicável hoje em dia, “The ten little nig****”), por “quem vai ser o próximo cancelado na corrida pelo trono de S.Pedro?”.
Agora é Steven Soderbergh que parece reciclar o tipo de cena um tanto inverossímil dos livros de Ellery Queen: logo no início vemos reunidos para um jantar quatro ou cinco espiões que estão sendo avaliados por outro. Um deles pode ter vendido um segredo de estado que traz enorme risco para a humanidade e, para tentar descobrir “whodunit”, fazem um “joguinho” de provocações em que cada um deve propor uma espécie de “resolução de ano novo” para outrem em vez de para si próprio. De certa forma, há uma paródia dos jogos verbais de Quem tem medo de Virginia Woolf?, memorável peça de Edward Albee - transformada em filme famoso da década de 1960 - em que os membros de dois casais se alfinetavam mutuamente de modo cada vez mais virulento e até mesmo cruel.
Uma série de dissimulações na base de “espião espiona espião” faz com que ninguém possa confiar em ninguém, com o agravante de, entre eles, haver pares, sendo um deles formado pelo casal vivido por Cate Blanchett e Michael Fassbender, um matrimônio conhecido pela fidelidade e conduta monogâmica. Mas como pode haver lealdade num casal de espiões em que, frequentemente, há missões individuais de alto sigilo que não podem ser compartilhadas com quem quer que seja? Se um cônjuge pergunta a seu par onde vai viajar a trabalho, a resposta pode ser o título original do filme, Black Bag, ou seja, 'pasta preta' onde seriam mantidos segredos que não podem ser desvelados em nenhuma hipótese... Mas se um dos suspeitos de ter vendido grave segredo a uma nação inimiga for exatamente seu cônjuge?
Esqueçam o plano-sequência inicial do prólogo, o que vai predominar são diálogos e mais diálogos entre os seis personagens centrais, em grupo ou em duplas, numa trama - como é de se esperar no gênero - cheia de reviravoltas até o “grande final” quando tudo será esclarecido... ou quase... ou nem tudo...
Um detalhe nada irrelevante pode soar inconvincente: um dos personagens tem a função de ser uma espécie de psicoterapeuta de alguns outros, confundindo ainda mais o que seria o sigilo profissional de psicólogo com os segredos que devem ficar no modo “pasta preta”. Mas com um pouco mais de suspensão da descrença, isso pode ficar em segundo plano, e o filme prende a atenção cumprindo o objetivo de divertir à moda de antigos romances policiais - em tintas mais contemporâneas.
Parênteses: um ponto mais incontornável é o que Cate Blanchett fez com o rosto que mais parece com sua possível estátua de museu de cera de Madame Tussauds.
Soderbergh, além da direção, acumula a fotografia, muitas vezes adequadamente sombria, e a edição, contando ainda com boa colaboração da música de David Holmes em passagens de predomínio rítmico eficiente para pontuar essa trama de sexo, mentiras e espionagem.