Críticas


A ÚNICA MULHER NA ORQUESTRA

De: Molly O'Brien
Com: Orin O'Brien, Molly O´Brien, Manny Alvarez
12.03.2025
Por Maria Caú
O vencedor do Oscar de melhor curta documental é uma pequena joia

Realizadores de documentários e curtas-metragens costumam ter duas queixas em comum: a de que seus filmes ficam sempre relegados ao circuito dos festivais e, portanto, são pouco vistos pelo grande público; e a de que a crítica especializada pouco se ocupa de fazer com que essas obras reverberem (os textos críticos sobre documentários e curtas são bem mais raros do que aqueles que têm por foco os longas-metragens de ficção). Dentro deste contexto, é fácil imaginar o não lugar a que ficavam proscritos em especial os documentários em curta-metragem, que até hoje têm uma circulação bastante restrita e são pouco debatidos ou comentados, mesmo entre os críticos de cinema. Assim, é preciso celebrar o fato de que os streamings andam incorporando aos seus catálogos pelo menos as obras mais premiadas dentre os curtas-metragens internacionais e nacionais, que podem agora ser acessados mais facilmente pelos espectadores. Perfeitos para a ocasião em que você não deseja se engajar numa fruição muito longa e pode dar a estes filmes uma atenção individualizada (o que raramente acontece num festival, em que invariavelmente diversos títulos são unidos em sessões nem sempre muito coesas), alguns desses filmes chegam aos catálogos dos maiores streamings do país oportunamente agora, logo após o fim da temporada de premiações.

Este é o caso de A única mulher na orquestra, de Molly O´Brien, vencedor do Oscar de melhor curta-metragem documental, disponível no catálogo da Netflix. O filme, que, com seus 35 minutos de duração, pode ser considerado um média-metragem, é uma biografia íntima e familiar, em que a diretora apresenta ao público a carismática figura de sua tia, a contrabaixista renomada Orin O´Brien. Em 1966, Orin se tornou a primeira mulher contratada pela Filarmônica de Nova York, cargo que ocupou por 55 anos, se aposentando somente em 2021. Molly registra o cotidiano da tia, as aulas que ela ministra, seus últimos eventos na filarmônica, o destino dos seus pesados instrumentos de trabalho quando de sua aposentadoria. Ao longo de todo o filme, a profunda admiração de Molly pela postura altiva, vibrante (com 80 e tantos anos, Orin parece ao menos uma década mais jovem) e energética de Orin fica clara, à medida que a personalidade doce e carinhosa da diretora entra em choque com a postura compenetradamente dominadora de Orin, uma pessoa evidentemente extraordinária, mas que se esforça para questionar a validade do seu posto nobre de personagem do que seria (fosse ela outra mulher) um documentário clássico sobre um feito histórico marcante.

Logo no início da narrativa, Orin comenta: “Minha sobrinha é a diretora. Eu disse para ela não fazer isso e ela me desobedeceu”. Mais adiante, quando Molly comenta sobre a trajetória inspiradora da tia, ela desafia mais uma vez a condução do documentário, dizendo à sobrinha: “Você está tentando me tornar mais importante do que eu sou e eu não me sinto confortável com isso”. Essa amável tensão é a tônica da narrativa, pontuada por entrevistas com alunos e amigos e lembranças de Orin, que reconta articuladamente sua infância, a intensa paixão pela música e pelo instrumento que escolheu, assim como momentos cruciais de sua carreira. As memórias de Orin por vezes se chocam com as lembranças da sobrinha, que, no bojo de uma família de artistas, idealizou a vida da tia, que ela vê como um ícone feminista. Neste contexto, surgem algumas matérias jornalísticas sexistas dos anos 1960, que se preocupavam em comentar a aparência de Orin ou fantasiar que os colegas homens a ajudariam a carregar seu contrabaixo (certamente um dos instrumentos mais volumosos de uma orquestra). Nestes momentos, Orin defende sua habilidade e seu estudo contínuo, ainda que amiúde negando seu papel de artista, talvez para se afastar dos fantasmas de seus pais, George O´Brien e Marguerite Churchill, dois atores bastante famosos do cinema clássico americano, mas legados ao ostracismo quando envelheceram. Neste ponto, sublinha-se o fato de que Orin se orgulha de seu papel “coadjuvante” na orquestra, afirmando nunca ter sido solista ou tentado se sobressair em relação aos demais. A contrabaixista parece genuinamente movida pelo trabalho em equipe, ainda que fique claro, através dos muitos depoimentos e da forma como seus alunos e colegas a tratam, com discreta deferência, que seu talento e dedicação sempre fizeram com que ela assumisse destaque.

Neste contexto, é uma escolha interessante que Molly não se dedique a abordar em detalhes a vida particular da tia – não ficamos sabendo se ela se casou ou que outros interesses nutria para além da música, por exemplo. A realizadora, a última sobrevivente da geração que precede Molly na família (o pai da cineasta, já falecido, era o irmão mais novo da musicista), consegue conduzir de maneira fina uma narrativa que é, em realidade, uma conversa franca sobre artistas mulheres, as dificuldades particulares que elas enfrentam e a forma como uma geração encontra inspiração naquela que a antecede. É desta maneira bonita e espirituosa que, tentando entender a magia que circunda Orin, Molly parece (re)encontrar seu destino na terra dos seus avós, o cinema.




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Outros comentários
    5386
  • Marisa Aragão
    13.03.2025 às 03:09

    Maravilhosa a abordagem que você faz ampliando acertivamente a leitura desse excelente documentário no qual a parceria entre direção e personagem dá o tom e inclui nossa imaginação. Sintonia plena, Maria Caú