Quando escutamos que certos cineastas fazem sempre o mesmo filme com pequenas variações, em relação ao chinês Jia Zhangke isso jamais pode ser considerado um aspecto negativo. Se filmes como “O Mundo”, “Em Busca da Vida”, “As Montanhas se Separam”, entre outros, trazem em comum não apenas a presença de sua musa Tao Zhao na tela como também documentam a transformação pela qual a China passou nas últimas décadas, em seu novo filme, “Levados Pelas Marés” (“Feng Liu Yi Dai”), ele dá a esse conceito de “repetição” uma nova dimensão.
Se valendo de imagens que rodou para obras anteriores e somando-as ao material recém-filmado, as mudanças sociais, políticas e ambientais em seu país ficam ainda mais evidentes, enquanto são intercaladas com uma história de amor complicada envolvendo Qiaoqiao (Tao Zhao) e Bin (Zhubin Li).
A história começa em 2001, em uma cidade no norte da China, com mulheres cantando dentro de uma sala de casa, logo dando lugar a imagens de pessoas pulando freneticamente ao som de dance music numa discoteca. Tamanha euforia parece explicada por trechos de noticiário televisivo falando do fortalecimento das reações econômicas entre a China e os Estados Unidos. O comunismo estava ruindo como o Palácio de Cultura dos Trabalhadores, com suas poltronas destruídas e um grande retrato empoeirado de Mao resistindo apoiado no chão. Em seguida, o povo celebra nas ruas a escolha para sediar os Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim.
É nesse cenário que surge o casal de protagonistas. Quase não há gestos de afeto e diálogo entre eles, mas percebemos que ela parece mais interessada na relação. Até que em 2006 ele parte atrás de novas oportunidades profissionais no Sul. A despedida se limita a uma mensagem de texto pelo celular, mas ela não desiste e resolve ir atrás dele percorrendo o país, o que serve de pretexto para o diretor inserir o elemento ficcional dentro de um contexto documental evidente.
Até que chegamos em 2022, em meio ao cenário de incerteza e paranoia causado pela Covid, onde o efeito do avanço tecnológico fica evidente em diversos momentos. Estamos na era do Tik Tok, e até na China o bizarro ganha status de celebridade, como um senhor sem dentes que tem mais de um milhão de seguidores interessados em suas dancinhas e nas “publis” que ele faz para monetizar. Qiaoqiao interage com um robô que reconhece seu semblante de tristeza e lhe oferece citações de Madre Teresa de Calcutá e Mark Twain.
Quando finalmente se dá o reencontro do ex-casal, tudo se transformou – no país e em suas vidas. Há um resquício de silenciosa ternura, até que a vida segue seu rumo em ritmo literalmente acelerado. A única coisa que parece não mudar é a delicadeza com que Jia Zhangke extrai poesia e sentimento da relação ao mesmo tempo afetiva e melancólica que tem com o seu país e seus personagens.
(Visto no Festival de Cannes de 2024)