Por um caminho interminável, acompanhamos Dora (Sinara Teles), a heroína em sua jornada estrada adentro. Nas entranhas de uma Minas Gerais sofrida, castigada pelos desgastes da exploração mineral, Suçuarana se desenvolve.
O longa da dupla de diretores Clarissa Campolina e Sérgio Borges é uma obra que exige movimento, em que a protagonista solitária está sempre seguindo em frente. Encontramos na linguagem uma forma sutil de frear esse caminhar desatinado. Repleto de cenas estáticas, com muitos planos médios e abertos, Suçuarana reserva momentos contemplativos que nos ajudam a refletir sobre questões mais existenciais ao olhar para movimentos naturais, como o vento nos galhos das árvores, e para paisagens rochosas que se mesclam com as industriais.
O filme é um road movie que parece beber da fonte de referências como o visceral Os renegados (1985), de Agnès Varda, em que a protagonista andarilha Mona (Sandrine Bonnaire) atravessa o sul da França sem saber aonde quer chegar e sua jornada se torna mais importante do que seu destino. Assim acontece também com a resiliente Dora, que, ao cruzar as estradas no Sudeste do Brasil, encontra no percurso uma forma de vida. Entre escolhas de liberdade e modos de lidar com sua solidão, a moça segue seu rumo; no caminho, conhece pessoas e vive novas experiências coletivas.
Suçuarana traz consigo elementos que o fazem original. Apesar de o tema já ter sido abordado diversas vezes no cinema, o longa brasileiro usa camadas oníricas e existencialistas que representam, para além do crescimento pessoal de sua protagonista, noções de comunidade e de fé e a cultura identitária de um povo, trazendo densidade à aridez de uma caminhada sofrida e solitária.
Quando Dora resolve se deslocar, a força motriz aparente de seus movimentos é encontrar o Vale de Suçuarana, uma terra desconhecida, ideia à qual a jovem se apega ao entrar em contato com o nome deste local, escrito à caneta no verso de uma fotografia antiga. Ela entende que é pra lá que deve ir e, quem sabe, enfim, achar seu lugar no mundo. O fato é que esse vale talvez não exista, assim como também talvez não exista espaço para que Dora estacione. No confronto desses dilemas, conhecemos a força voraz da interpretação de Sinara Teles, que dá forma a uma mulher forte, dura e decidida, que não se faz de vítima das circunstâncias em que vive. Dora dorme ao relento, passa fome e às vezes frio, mas nunca se mostra frágil, acuada ou intimidada pelas adversidades que encontra.
Suçuarana conta ainda com a interpretação incrível de Carlos Francisco (Marte Um, Bacurau), que traz mais peso reflexivo e afetivo ao longa, interpretando um senhor que perde seu casaco, encontrado por Dora. Quando ela devolve a peça ao dono, ele percebe que os maços de dinheiro que estavam em seu bolso permanecem lá. Dora então é presenteada com o casaco e alguns trocados e segue seu rumo em uma fria estrada numa noite de tempestade.
Esse personagem volta a encontrá-la dias depois, junto a uma comunidade de operários, majoritariamente composta por mulheres que vivem do serviço pesado de desmonte de peças de automóveis em uma fábrica abandonada. A fábrica surge como uma metáfora do Estado abandonado pelo histórico da exploração de minérios, rigidamente retratada com cores frias, frente a um céu quase sempre branco. Esses encontros e sua estadia junto a esse grupo de trabalhadores que a acolhe mostram que a vida oferece a Dora seu lado humano, e ela parece querer ficar, mas só por um momento.
Como um companheiro misterioso de jornada e uma espécie de elo emocional de Dora, somos apresentados a um cão sem nome, de que primeiramente ela tenta se livrar, mas depois gentilmente batiza de “Encrenca”. O animal surge como um parceiro, o único que a protagonista acolhe de verdade em seu estilo de vida desapegado e incerto. É curioso o fato de Encrenca representar um ponto subjetivo no filme, um flerte com o realismo fantástico, um ser que sobrevive a ferimentos que parecem graves, que some e depois ressurge, e que é reconhecido com os devidos créditos na equipe do longa, com seu nome (Tony Stark) creditado com destaque junto ao pequeno elenco do núcleo principal.
A ligação entre Dora e Encrenca é certamente menos intensa do que a de Wendy e Lucy, personagens do filme homônimo de Kelly Reichardt de 2008, estrelado por Michelle Williams, que interpreta uma mulher que fica sem casa e luta para sobreviver sozinha nas ruas em busca de sua cachorra perdida. Wendy é mais sentimental e apegada, porém forte e resiliente como Dora quando precisa encarar a rua e seguir atrás de seu objetivo.
Suçuarana é um filme de estrada, uma obra em que impera a impermanência, e sua coerência está na rigidez com o trato formal dessa escolha, sustentada do início ao fim por Dora, uma heroína clássica seguindo sua jornada. É esteticamente caprichado, com uma fotografia de enquadramentos precisos, que não deixa bordas nem arestas nas imagens que produz, seja quando quer nos fazer refletir sobre o estado das coisas físicas, seja das espirituais.