Apesar do título do mais recente filme de Woody Allen remeter à profetisa troiana, Cassandra, o enredo sugere bem mais uma variação em torno da tragédia de Macbeth. Trata de dois rapazes, irmãos em situação financeira sempre inferior aos seus gastos e pretensões de ascensão social, mas que contam com um real “tio da América” bem-sucedido nos negócios (Tom Wilkinson) para saldar dívidas de jogo (Colin Farrell) ou investir em um novo e incerto negócio (Ewan McGregor). Este também passa por bem mais abonado do que de fato é ao paquerar uma aspirante a atriz igualmente carreirista (Hayley Atwell). A surpresa virá do fato de que “não existe almoço grátis”... e do preço que o titio, desta vez, vai pedir - em nome dos laços de sangue familiares (em uma visão bem “mafiosa”) e em troca do socorro monetário que volta e meia oferece aos parentes pobres de Londres.
A proposta e as promessas do ‘tio Howard’ funcionam como algo equivalente às profecias instigantes de ambição desmedida e “a qualquer preço” tal como redundaram as predições das bruxas na abertura da tragédia shakespeareana. Podemos também lembrar das reações de Macbeth e de Banquo com atitudes diferentes face ao futuro anunciado pelas feiticeiras. Ou ainda, pensar em Lady Macbeth e sua culpa. Mas tais possíveis analogias não surgem de forma esquemática nem em paralelismo rígido. Por exemplo, os remorsos enlouquecedores da ‘Lady’ podem acontecer em um homem. Por que não? As discussões éticas de outros filmes do cineasta (Crimes e Pecados e Match Point – Ponto Final) são retomadas como mais uma variação do mesmo tema: se a punição social e legal não vier a ocorrer, como cada um lidaria com a consciência de suas transgressões morais?
Esta discussão era bem aprofundada e com um espectro bem amplo em Crimes e Pecados, cujo roteiro, ainda que em um filme de menor duração do que o atual, abordava um número maior de situações tão diferentes quanto “parecidas” (e aproximáveis). Como o próprio título original, Crimes and Misdemeanors, anunciava: mais do que “pecados”, a conotação era de ‘crimes e “maus modos” ’- ou deslizes “menores” - que não deixam de estar presentes neste O Sonho de Cassandra. Apanhar dinheiro “emprestado” do cofre do pai sem avisar - é um empréstimo mesmo, ou já seria um roubo? E o que representa dormir com um produtor para ganhar um bom papel em um filme? E pegar, novamente como “empréstimo”, carros estilosos para impressionar a namorada na oficina em que o irmão trabalha e com cumplicidade do mano? Quando é que se cruza a linha dos pecados veniais para os pecados mortais? Como lidar com a “zona de penumbra” da auto-complacência e das “justificativas” mais ou menos amorais?
No novo filme, entretanto, algumas premissas - e mesmo alguma coisa na evolução dos personagens - podem soar um pouco esquemáticas e um tanto pré-fabricadas, embora isto seja contrabalançado pela excelência dos desempenhos de todo o elenco, incluindo o casal de atores que fazem os pais dos dois irmãos (John Benfield e Clare Higgins em interpretações bem espontâneas e com enorme verossimilhança para com a classe social a que os personagens pertencem). As namoradas dos rapazes também estão ótimas: Halley Atwell - no papel da atriz - e Sally Hawkins, como uma moça mais ingênua e simples. Mas o maior destaque vai especialmente para os dois atores principais, quase que o tempo todo em cena - e contracenando com cumplicidade rara: Ewan McGregor e Colin Farrell (neste que deve ser seu melhor desempenho).
A direção de Allen também é digna de nota por sua objetividade, fluência e despojamento, notável também na fotografia sem enfeites de Vilmos Zsigmond que abandona os requintes de Dália Negra e de outras colaborações para mostrar um lado menos glamuroso da vida londrina. Também a música de Philip Glass se apresenta menos interferente (e usada com mais parcimônia) do que habitualmente.
A profetisa do título tinha o dom de antecipar o futuro e sofria com a maldição de Apolo: ninguém acreditava no que ela previa – corretamente. Parece que só antecipava desgraças: como a queda de Tróia quando Helena foi raptada e o perigo que representava aceitar o enorme cavalo de madeira que continha soldados gregos para atacar a cidade “por dentro”. Batizar um barco como o nome “Sonho de Cassandra” já era uma idéia estranha porque sugere algo pessimista como o nome da sacerdotisa passou a conotar. Claro que o que desencadeia o drama neste filme não foi o fato de que a dupla de irmãos compraram um barquinho com este nome e não o rebatizaram. Mas que pode ter sido uma tremenda urucubaca, pode... afinal, Macbeth também não acreditava nas bruxas até encontrá-las, e como dizem os supesticosos de Espanha, “pero que las hay, las hay”
O SONHO DE CASSANDRA (CASSANDRA’S DREAM)
Direção e roteiro: WOODY ALLEN
Fotografia: VILMOS ZSIGMOND
Edição: ALISA LEPSELTER
Música: PHILIP GLASS
Elenco: EWAN MCGREGOR, COLIN FARRELL, HAYLEY ATWELL, JOHN BENFIELD, CLARE HIGGINS, TOM WILKINSON.
Duração: 108 minutos
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