
Alguns filmes passam. Outros permanecem como cicatriz aberta na retina. Pecadores (disponível no HBO Max) pertence a essa segunda categoria. Não busca convencer, mas constranger, tensionar, desorganizar. O filme não representa a realidade; faz o espectador colidir com ela. Assistir é tocar um limite que não se dissocia do mundo, porque nasce do atrito entre forma e existência.
Desde os primeiros planos, Coogler estrutura uma mise-en-scène que recusa a neutralidade. Cada enquadramento delimita o que se vê e o que é excluído. A câmera age como instrumento de poder e resistência. O aspecto de tela comprimido, o foco estreito, a profundidade de campo rarefeita compõem um corpo filmado que habita margens e precisa se dobrar para caber dentro do quadro. Essa compressão visual traduz uma opressão cotidiana.
A composição de filme ecoa uma espécie de olhar estruturado pela desigualdade. Coogler aborda esse eco e questiona a quem pertence a autoridade de ver e ser visto. A câmera não domestica corpos racializados, tampouco os transforma em espetáculo; torna-os o centro da narrativa. O olhar branco, confortável, perde sua posição de comando. A visualidade se torna campo de disputa.
O som tem papel narrativo e político. As batidas fora do compasso, o silêncio entre ruídos e a respiração que se mistura à trilha criam uma textura sonora que encarna a instabilidade de viver sob vigilância. A resistência estética, nesse filme, começa quando corpos negros tomam posse dos modos de ver e escutar (isso deve ser bell hooks). Pecadores concretiza essa ideia. O ruído e o som distorcido são a inscrição sensorial de uma história que o cinema dominante tentou silenciar.
A montagem segue uma ética da fratura. Cada corte interrompe a continuidade e revela a vida interrompida. Gilles Deleuze, em A Imagem-Tempo (1990), afirma que o cinema moderno nasce quando o movimento deixa de ser contínuo e passa a ser pensamento. É esse o princípio que rege o ritmo aqui: um pensamento ferido, que se reorganiza enquanto sangra. A montagem não organiza o real, expõe o conflito entre tempo e trauma.
Coogler não filma a violência como espetáculo. Ela está na estrutura do olhar, na hierarquia do foco, na forma como o som ocupa o espaço. Quando a câmera se aproxima do corpo, o gesto é de confronto. O cinema torna-se campo ético. Deve ter sido Rancière quem observou que a política da arte não reside no conteúdo representado, mas nas formas de sensibilidade que ela propõe. Pecadores encarna essa política na experiência sensorial de quem o assiste.
A relação entre filme e espectador é de implicação. O público não observa de fora; participa do circuito de tensão instaurado pela imagem. Ver torna-se um ato de resposta. Há uma questão importante sobre a experiência de assistir a um filme, uma abordagem que diz respeito a o olhar do espectador (ou do criador) nunca ser inocente. Coogler abraça isso e amplia a reflexão, transformando o espectador em cúmplice da imagem que o fere.
O corpo filmado impõe presença. A cor da pele não atua como símbolo, mas como superfície de inscrição histórica. A luz que incide sobre ele revela o quanto a fotografia ocidental foi estruturada para o invisibilizar. Pecadores desafia esse paradigma técnico. A iluminação não embeleza, revela fissuras. Cada sombra carrega o peso de uma história colonial ainda viva.
Em termos físicos mesmo, o filme constrói um espaço que parece sempre menor que os corpos que o habitam. A opressão se manifesta na mise-en-scène: corredores estreitos, interiores sufocantes, janelas sem saída. O espaço fílmico é extensão da estrutura social. Em vários momentos, o filme abandona a narrativa e mergulha em experiência sensorial. A sequência em que o som desaparece e o corpo se move por impulso puro é uma das mais radicais do cinema recente. Não há música nem palavra, apenas respiração. Nesse instante, o cinema se torna presença viva.
O diálogo com tradições cinematográficas é claro. Daria para dizer (e talvez dê de fato) que há ecos de Tarkovsky no tempo denso, de Eisenstein na relação entre imagem e ideia, de Glauber Rocha na câmera como instrumento político. Coogler transforma tudo isso em linguagem própria. Seu cinema nasce do embate entre a memória e o presente.
Pecadores fala sobre o ato de existir sob cerco e o esforço de persistir. A sobrevivência é esforço e resistência cotidiana. O ritmo do filme reflete esse movimento: cadência quebrada, mas insistente. A cada corte, uma tentativa de reorganizar o mundo. Por isso, o espectador tem grande chance de não encontrar catarse. Somente incômodo, e é ele (o incômodo) que impede o esquecimento. O filme impõe uma dimensão ética ao olhar. Não há neutralidade diante da dor visível. O filme ultrapassa sua narrativa e reconfigura o próprio ato de ver como prática política.
Coogler constrói um cinema que pensa com o corpo. A câmera participa, a luz revela, a montagem fratura. Esse gesto devolve ao cinema, especialmente ao comercial, sua potência de desestabilizar.
No fim, o que permanece é a pergunta: o que significa ver? O que significa existir dentro de um quadro que não comporta certas presenças? O que resta de humano quando o mundo se organiza para reduzir alguns ao silêncio?
O cinema aqui não é refúgio. É embate. É ferida.