
“O Agente Secreto”, filme de Kleber Mendonça Filho que venceu os prêmios de direção, ator e da crítica internacional no Festival de Cannes, se passa durante o período da Ditadura Militar, no Carnaval de 1977, em Pernambuco. Wagner Moura interpreta Armando, que se esconde sob o codinome Marcelo, um professor e pesquisador universitário que retorna ao Recife e descobre que está jurado de morte por um empresário do setor energético com fortes ligações com o governo.
A cena inicial mostra Armando abastecendo seu Fusquinha amarelo em um posto de beira de estrada, onde jaz um cadáver coberto com jornal e moscas voando ao redor. Logo em seguida chega uma patrulha da Polícia Rodoviária, que ignora o cadáver e tenta arrumar a todo custo um pretexto para arrancar algum dinheiro dele. Como toda a documentação e equipamentos do carro estão em dia, eles se contentam com o resto de um maço de cigarros e partem, abandonando o corpo putrefato.
O prólogo é importante para reforçar aspectos característicos da brasilidade – a corrupção, o abuso de autoridade e a banalização da violência – que permanecem vivos nas relações entre o poder público e o cidadão. Essa é apenas a primeira ponte que o diretor vai estabelecer entre o Brasil do período da ditadura e o presente.
“O Agente Secreto” se soma a “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, como um reforço importante na preservação, pelo viés da ficção de excelência, da memória de um período tenebroso da história brasileira que parte da população ainda desconhece ou se recusa a conhecer. É verdade que, mesmo terminada a ditadura, muita coisa permanece idêntica, como a violência policial arbitrária e sem limites, e os privilégios de classe. O filme reforça essa ligação, com policiais desovando cadáveres no rio, ou na cena em que uma mulher rica tem uma série de regalias ao prestar depoimento na delegacia sobre a morte do filho da empregada, que estava sob os cuidados dela quando foi atropelado. A referência é clara a uma tragédia real e recente: a morte do menino Miguel após a queda do nono andar em um prédio de luxo no Recife em 2020. A ré, patroa da mãe da criança e casada com político influente, segue em liberdade.
Há também uma outro aspecto caro ao diretor, que jamais nega o seu passado de crítico, que são as referências cinematográficas que a todo instante surgem na tela e a importância deixada pela memória dos cinemas de rua, algo que foi tema de seu documentário “Retratos Fantasmas”. Por isso, no novo filme, o tradicional cinema São Luiz, no Centro do Recife, tem mais do que o status de locação onde passam filmes como “Tubarão” e “A Profecia”: ele é praticamente um personagem.
A tradição oral, pela reprodução da lenda urbana da Perna Cabeluda (também citada por Chico Science na letra de “Banditismo Por Uma Questão de Classe”), abre uma brecha para que Kleber insira uma referência ao cinema fantástico que sempre povoou sua obra. Ou seja, para além da história envolvente de um sujeito jurado de morte sob um regime de exceção que tenta se conectar com seu passado, há uma ambição em juntar tantos elementos que eventualmente algum acaba soando deslocado. A participação do ator alemão Udo Kier, por exemplo, não acrescenta nada, mas é tão curta que não chega a incomodar.
Mas o conjunto é bem acima da média. O pernambucano Kleber se vale de sua familiaridade com o Recife, onde nasceu e cresceu, para mais uma vez expressar com maestria e um senso de observação fora do comum os aspectos singulares da brasilidade. Isso pode ser visto em detalhes como um violento delegado trabalhando ainda com restos de confete e marcas de batom espalhados pelo corpo – afinal, é Carnaval. A ambientação de época é impecável no resgate da textura visual e musical do período, e o filme conta com um elenco primoroso, do protagonista Wagner Moura a uma constelação de coadjuvantes, em que brilham quase todos. O delegado de Robério Diógenes e a atriz Tânia Maria (a senhorinha que dá refúgio aos perseguidos), que havia feito uma participação em “Bacurau”, roubam a cena em inúmeros momentos.
O único porém fica por conta dos trechos contemporâneos da trama, a começar pelo fato de que as jovens atrizes que escutam as fitas cassete que estabelecem a ligação com o passado têm um desempenho abaixo do restante do elenco. Até mesmo Wagner Moura é menos convincente quando ressurge em outro papel. Pode-se compreender o anticlímax no desfecho como algo proposital, para criar um distanciamento entre o espectador e o relato ficcional, alertando para a realidade do presente. Mas o efeito pode ter sido o oposto, já que a sequência perde o impacto desejado ao pecar pelo excesso de didatismo. A esta altura, porém, a tendência é que o espectador já esteja “ganho” pelo encantamento que “O Agente Secreto” provoca. Os prêmios em festivais e as reações entusiasmadas são, portanto, plenamente justificáveis por este belo filme.