
Ah, o terror da mulher domesticada, o terror do cotidiano solitário da mulher inteligente e criativa que se vê a sós com seu(s) filho(s) no espaço de uma casa invariavelmente isolada, à eterna espera de um marido que pode, ele sim, ir e vir a seu bel-prazer. Esse mote já foi hiperexplorado na literatura (e no cinema) e aqui toma corpo nas vivências de Grace (Jennifer Lawrence), escritora e mãe de primeira viagem que se vê em profundo tédio (e, naturalmente, em bloqueio criativo) numa casa que poderia ter saído de um filme de terror. De fato, o imóvel foi herdado de um parente que se suicidou e vai abrigar fantasmas, mas os fantasmas de Grace, que cai em desgraça (trocadilho intencional) quando seu insulamento profundo e dedicação apenas à vida doméstica provocam o que vai se configurando como um quadro de psicose.
A diretora, Lynne Ramsay, encontra maneiras claramente inventivas para encenar o crescente descompasso de Grace com o mundo à sua volta. Neste contexto, a escolha da janela quadrada amplia a sensação de claustrofobia da protagonista, um acerto da direção de fotografia de Seamus McGarvey. O longa, no entanto, sofre de um problema comum das adaptações literárias de romances que se dedicam a uma investigação psicológica detida de seus personagens. Quando uma obra literária se constrói como uma narrativa em primeira pessoa que é também um mergulho vertiginoso no mundo interior de alguém, o cinema tem dificuldade para emular este modo narrativo comum do romance – afinal, a menos que estejamos falando do raríssimo caso de um filme que se desenrola inteiramente em planos ponto de vista, estamos legados a precisar forçosamente retratar o mundo externo no qual se encontram os personagens. Neste contexto, é possível, claro está, lançar mão de uma infinidade de recursos para posicionar o espectador no pacto narrativo (ou seja, para dizer: isto não é necessariamente a verdade, mas uma representação de uma perspectiva), da narração em voz over a toda uma série de expedientes fotográficos. No caso de Morra, amor, esses métodos parecem vacilantes e têm-se a impressão permanente de uma adaptação insegura do material literário (não se trata aqui de comparar um filme a um livro, mas da sensação transmitida ao espectador que nem sequer conhece o livro de estar diante de uma narrativa intermediada por um elemento estrangeiro que jamais é posto em cena e que surge não como mistério, mas como ruído). Em última análise, esse distanciamento acaba por afastar o espectador não só da protagonista, mas de todos os personagens, que permanecem inacessíveis e flutuantes.
Ironicamente, é essa posição de afastamento a que o espectador é legado que promove alguns dos melhores momentos da obra, à medida que somos obrigados a assistir, conscientes de nossa completa impotência, à espiral vertiginosa da loucura de Grace, que se aprofunda no terreno fértil da flagrante negligência dos parentes. O elenco traz veteranos talentosos, Sissi Spacek e Nick Nolte, que elevam muito o conjunto. No papel do marido, Robert Pattison surge correto, mas um tanto esquecível. A interpretação de Jennifer Lawrence tem um vigor que ela não demonstrava desde Inverno da alma, ainda que com momentos derrapantes. Não é de bom tom comparar com a Mabel de Gena Rowlands em Uma mulher sob influência.
De modo geral, trata-se de um filme irregular, mas que usa sua irregularidade como modus operandi. Um laivo de genialidade ou uma maneira ostensiva de mal esconder uma mácula? Talvez um pouco dos dois.