
A beleza de O Filho de Mil Homens (disponível na Netflix) nasce da maneira como o filme acompanha seus personagens sem tentar domá-los. Daniel Rezende se aproxima das vidas que filma com um cuidado que lembra histórias contadas por vovó: cada rosto surge iluminado por dentro, como se carregasse algo que ainda busca nome. A impressão é de que o diretor quer que o espectador caminhe junto, sem pressa, observando como cada pessoa tenta reorganizar o próprio coração.
Crisóstomo aparece marcado pela solidão, mas a adoção de Camilo revela um afeto que cresce pelas bordas, como planta que encontra caminho mesmo entre pedras. Francisca tenta existir num espaço que sempre a tratou com desconfiança. Antonino luta diariamente para não ser engolido pelos medos que aprendeu dentro de casa. Isaura tenta escapar de um destino decidido por outras mãos. Cada um desses caminhos se sustenta no próprio ritmo, e o filme respeita esse tempo interno.
A fotografia de Azul Serra (parceiro de Rezende desde a série O Mecanismo e de Turma da Mônica: Laços) cria uma sensação de mundo que observa. As rochas escuras e o vento incansável parecem guardar os personagens como guardiões antigos. Esse uso da paisagem tem algo daquilo que críticos como Roger Ebert descreviam como “cinema que escuta”: a natureza não ilustra emoção, mas acolhe o que os corpos não conseguem dizer.
Rezende conduz a narrativa com uma confiança rara nos silêncios. Ele entende que certas emoções só surgem quando não são explicadas. Esse gesto talvez faça nascer um tipo de sensibilidade que é atribuída ao realismo no cinema: oferecer ao espectador espaço para completar o que vê (acredito que é André Bazin quem mais comenta a respeito). Aqui, isso não aparece como teoria, surge como experiência mesmo. O filme parece respirar entre as cenas.
Quando as histórias convergem, a força do encontro não depende de reviravoltas; depende da sensação de que cada personagem chegou carregando marcas e descobertas que não poderiam ter sido antecipadas. É como observar um círculo se formar aos poucos. Esse movimento tem uma aura de contos bem brasileiros, sertanejos, por mais que a matéria-prima seja de um escritor português. A poesia de Valter Hugo Mãe parece se entrelaçar com narrativas de pescadores, nos quais diferentes trajetórias só fazem sentido quando colocadas lado a lado. Esse modo de guiar é o eco do espírito de O Filho de Mil Homens, onde cada personagem carrega uma fatia do mundo.
Além disso, o filme oferece uma forma simples e ao mesmo tempo profunda de pensar o cuidado. Não se trata de heroísmo; trata-se da coragem de estender a mão quando ninguém espera esse gesto. O espectador pode perceber que os laços do filme são construídos por pequenos atos, quase imperceptíveis, mas capazes de mudar o destino de alguém.
Ao final, fica a sensação de que Rezende procurou uma maneira de celebrar o que nasce quando o afeto encontra espaço para existir. O Filho de Mil Homens oferece esse espaço e dá liberdade para que o público reconheça, com serenidade, que mundos inteiros podem se transformar quando alguém decide enxergar o outro com generosidade.
para minha sogra, Nuria Pardillos