
Com a Palma de Ouro este ano para “Foi Apenas Um Acidente”, o iraniano Jafar Panahi, conhecido por filmes como “Táxi Teerã”, “Isto Não É Um Filme”, “O Balão Branco” e “Três Faces”, acabou entrando para o seleto rol dos diretores que venceram Cannes, Veneza e Berlim. O novo filme, rodado clandestinamente no Irã, foi inspirado pelos relatos de tortura e violência que ouviu de seus ex-companheiros de cela nas vezes em que esteve encarcerado como prisioneiro político. Ele nunca foi tão explícito e direto na crítica ao governo como agora.
Panahi parte de uma premissa singela (o atropelamento de um cachorro numa estrada) para trazer à tona a violência com que o regime teocrático trata seus opositores. O acidente danifica o carro e faz com que o motorista pare numa oficina onde trabalha Vahid, que, ao ouvir o ruído da prótese da perna mecânica do dono do carro, o identifica como sendo seu torturador no período em que esteve preso. Enfurecido, o sequestra e está prestes a enterrá-lo vivo como vingança, mas é acometido pela dúvida: e se aquele sujeito que jura inocência for mesmo apenas um pai de família?
Vahid resolve alertar outras vítimas do suposto torturador, entre elas uma fotógrafa de casamento e a noiva que está participando da sessão de fotos. Todos sofreram experiências traumáticas pelas mãos do mesmo agente – só que ninguém consegue ter certeza se era mesmo ele, pois eram torturados de olhos vendados. As lembranças são as mais terríveis possíveis – a violência nunca é mostrada e choca ainda mais, já que o espectador precisa materializar o horror em sua imaginação a partir dos relatos.
O diretor quebra a tensão extraindo humor da situação insólita que é um grupo percorrendo a cidade em uma van com um sujeito preso dentro de um caixão e um casal de noivos vestido a caráter. Uma série de dilemas éticos e morais que envolvem empatia, remorso e vingança se sucedem, além de pequenos exemplos da corrupção cotidiana, como guardas que aceitam propina com maquininhas de débito, o que aproxima a realidade iraniana da brasileira – “O Agente Secreto”, vencedor dos prêmios de direção e ator na mesma competição de Cannes deste ano, começa com uma cena semelhante, só que os policiais do filme de Kleber Mendonça Filho precisam se contentar com alguns cigarros porque os anos 70 ainda eram analógicos.
Os mais variados graus de corrupção seguem entranhados em ambas as sociedades, mas no regime teocrático iraniano fazer cinema pode ser crime. Ano passado, Mohammad Rasoulof, condenado a oito anos de prisão, teve que fugir do país para conseguir exibir o excelente “A Semente do Fruto Sagrado” em Cannes, onde venceu o Prêmio Especial do Júri e o prêmio da Crítica Internacional (FIPRESCI). Agora, na mesma semana em que a obra-prima “Foi Apenas Um Acidente” estreou no Brasil, Panahi recebeu a notícia de que foi condenado novamente a um ano de prisão. O crime: “atividades de propaganda contra o estado”.