
No momento em que uma possível aquisição da Warner pela Netflix desperta o temor de que novos filmes sejam cada vez mais direcionados ao streaming em vez de salas de cinema, chega ao circuito brasileiro “Nouvelle Vague”, o tributo do diretor americano Richard Linklater ao movimento francês que revolucionou a linguagem cinematográfica a partir do fim dos anos 50 – curiosamente, nos Estados Unidos o filme já está em cartaz...na Netflix, após protocolares duas semanas nos cinemas.
Linklater recria ficcionalmente os bastidores das filmagens de “Acossado”, de Jean-Luc Godard, obedecendo a parâmetros estéticos e narrativos semelhantes aos da obra-prima em preto e branco estrelada por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg. Foi filmado em película 35mm com câmeras Arriflex como a utilizada pelo diretor de fotografia Raoul Coutard na época, no mesmo formato de tela 1.37:1 do filme francês, falado na língua original e estrelado por atores que guardam semelhança física e estão muito bem em seus papéis (Guillaume Marbeck é quase idêntico a Godard, Aubry Dullin não se parece muito com Belmondo mas incorpora seu jeito, enquanto a americana Zoey Deutch, a mais famosa do elenco, preserva o charme e o talento de Jean Seberg). Linklater oferece bem mais que um simulacro: é como se o espectador fosse transportado numa máquina do tempo para uma Paris em que uma turma de jovens realizadores oferecia um novo e fascinante cinema, beneficiado pelo fato de que se trata de uma cidade que preserva não apenas sua memória cultural como a urbana também, com muitas locações intactas e outras facilmente recriáveis.
Tirando alguns surtos de Godard e a irritação de Seberg, atriz hollywoodiana que não estava habituada a trabalhar sem roteiro, as filmagens de “Acossado” são vistas sem grandes percalços. “Nouvelle Vague”, portanto, pode focar em detalhes como os conselhos que Godard recebe de diretores como Roberto Rossellini e Jean-Pierre Melville e a importância do trabalho coletivo, com cada membro da equipe identificado por uma legenda ao surgir na tela (mais um exemplo da liberdade criativa antenada com o espírito do movimento).
Certos recursos que graças a “Acossado” ajudaram a revolucionar o cinema moderno, como o uso de jump cuts (saltos na montagem que quebram a continuidade e chamam a atenção para a presença do autor/diretor) são mencionados quase didaticamente em diálogos entre os personagens, mas não são utilizados por Linklater em seu próprio filme. Talvez seja uma precaução com os espectadores leigos que estão sendo encorajados a expandir seus horizontes, graças a um diretor que, mesmo transitando por Hollywood sempre equilibrou as ambições comerciais com um olhar artístico, com reflexões filosóficas sobre a passagem do tempo (seu tema preferido) de forma literal (“Waking Life”) ou sugerida pela poesia de obras como “Boyhood” e a trilogia nouvellevaguiana “Antes do Amanhecer/Pôr do Sol/Meia-Noite”.
Quem se deparar com “Nouvelle Vague” atraído pelo nome do diretor ou caindo por acaso nele no streaming (onde terá mais visibilidade) poderá estranhar as ousadias a princípio, mas mesmo sem pescar boa parte das referências tem tudo para se divertir com a narrativa envolvente e vibrante. No fim das contas, esta aula encantadora sobre o fazer cinema acaba sendo mesmo um deleite para quem é familiarizado com Truffaut, Godard e cia, com direito a um último plano que reconcilia na ficção quem nunca merecia ter se afastado na vida real.