Na partitura original manuscrita por Beethoven para um de seus últimos quartetos de cordas ele teria escrito: “É necessário?” e logo em seguida: “Sim, é necessário”. Essas obras transcendentais sempre podem provocar alguma estranheza, mesmo para ouvidos familiarizados com música: talvez muito da música do século XX já se anunciasse em trechos como no início do último movimento do Quarteto op.135 com sons dissonantes seguidos dos mesmos sons, ao inverso, quase um palíndromo.
Em A Questão Humana, de Nicolas Klotz, a música é um tema que perpassa o filme, seja através dos acordes iniciais de um outro quarteto de cordas (A Morte e a Donzela, de Schubert), seja em festas rave com seus sons techno, seja pelo fato de que quatro de seus personagens já teriam participado de uma formação clássica de dois violinos, uma viola e um violoncelo em um passado nem tão remoto assim.
Mas o tema central do filme é mesmo onde se coloca a “questão” humana (ou o “problema” que é o ser humano) em circunstâncias tão aparentemente diferentes como nas ações de extermínio pelos nazistas e nas seleções, recrutamento e “reengenharia” de quadros de empregados nas grandes empresas da atualidade. O grande Luchino Visconti já explicitava em entrevistas suas idéias sobre a sociedade industrial capitalista ter sido o ovo da serpente do nazi-fascismo, uma das “teses” que instrumentavam Os Deuses Malditos (1969) em seu retrato psicanalítico-sociológico da ascensão do nazismo na Alemanha. Em Visconti, o drama, a ópera, a mise en scène prevaleciam sobre a “tese” que demandava uma espécie de decodificação em alguma camada de leitura paralela e convergente à do espetáculo cinematográfico fascinante e terrível.
Não é esta a opção de Klotz. O cineasta e sua roteirista Elisabeth Perceval fazem questão de explicar através de narrativa verbal em off - ou mesmo em diálogos ao longo da projeção - a analogia entre: o abandono de qualquer consideração à condição humana (e o problema que representa o corpo humano em sua essência quando se quer destruí-lo, e mesmo depois de transformado em “coisa” morta) nos projetos de extermínio nazista – e (de certa forma, numa hipérbole) nos processos atuais das relações de trabalho e emprego que sofrem os pobres mortais frente às corporações que na verdade governam o mundo e que, em perverso circuito fechado em feedback, servem de “modelo” para os sistemas de governo atuais (que, por seu lado, propiciaram e sempre estimulam este apagamento do Estado em favor do capitalismo mais selvagem do que nunca).
A hipérbole de Klotz não é gratuita: não é de hoje que nas relações de trabalho mata-se a humanidade (no sentido adjetivo do termo) no que ela teria de melhor em seu processo civilizatório tal como - desde que já morto qualquer mínimo compromisso humanista - foi possível matar gente em escala industrial nos campos de concentração. Apenas uma questão de grau, de intensidade, de radicalização: mas a semente da des-humanidade se espraia de modo contagioso, com cinismo e verniz “científico”.
Neste sentido é inteligente o foco do filme em um psicólogo de RH de uma grande empresa, sendo ele servil aos propósitos de lucro acima de tudo para a corporação, assumindo cortes de dezenas e dezenas de funcionários com “justificativas” prenhes de sofismas, utilizando-se do mesmo conceito que coloca o alcoolismo como doença e não apenas “vício” para dizer que tal doença seria incompatível com o trabalho industrial, trazendo riscos para o próprio portador da moléstia. “Eliminem-se os doentes” é uma “solução” tão “final” em empresas como para a “ideologia” nazista. Se não se mata o corpo e a alma, começar pela alma é um caminho rumo à indiferença pela alteridade.
O personagem de Mathieu Amalric será o guia do espectador (ainda que equivocado como um “guia perdido”) em uma trama sinuosa de denúncias, registros de arquivo e informações contraditórias mas que acabam sendo complementares, rumo a um certo entendimento que coroa a “tese” que o diretor e a roteirista pretendem demonstrar. Sua atitude pouco ética é bem demonstrada através dos subterfúgios e mentiras que vai utilizar para se aproximar de um diretor (o veterano Michael Lonsdale, excepcional) que estaria com distúrbios emocionais: “investigação” que ele faz a pedido de outro diretor. Onde está a noção de “lealdade”. Para com quem? No decorrer do percurso nada parecerá tão claro. Uma das falsas desculpas que o psicólogo usa é exatamente a de formar uma orquestra com os empregados e funcionários, tal como, no passado, existiu a formação de cordas da qual participaram o diretor investigado, uma secretária, um químico e um personagem mantido fora de cena até perto do final.
Por mais que consideremos a pertinência da tese do filme (e é o caso), sua demonstração remete à questão beethoveniana que mencionamos na abertura deste texto: é necessária a forma escolhida? O filme se alonga por 143 minutos nem sempre justificáveis em suas digressões, até pertinentes como acréscimo de idéias e associações aos temas centrais na maioria das vezes, mas excessivamente “esticadas”. Mesmo o “gancho” do roteiro em torno da formação do quarteto de cordas é utilizado de modo questionável na medida em que o psicólogo-investigador vai atrás de um dos membros do grupo, sabe quem são os outros dois (a secretária e o diretor com possíveis problemas psíquicos), mas demora muito a se perguntar quem era o quarto nome da formação (mantido “oculto” até perto do desfecho apenas porque este não trabalha mais na empresa?)
A impressão final é de que um tema da maior gravidade e pertinência (que resumiríamos - ainda que de modo empobrecedor - como “o nazismo nosso de cada dia”) fica prejudicado pela opção formal da narrativa alongada e formalmente digressiva, muito menos porque seria “necessário” para coadunar conteúdo e forma - e muito mais por recorrer a recursos estilísticos que regem o que seria “contemporâneo” na atualidade cinematográfica e que recebe prêmios em festivais e de parte da crítica em busca de linguagem anti-tradicional a qualquer preço, mesmo que seja o de não aproximar (ou até mesmo dificultar) a comunicação com o espectador, ainda que interessado e não submisso à rotina dos blockbusters.
Esta também pode ser uma “questão humana”: se o horror do holocausto é irrepresentável em imagens desde Shoah (de Claude Lanzmann, 1985) e a fala final do filme de Klotz sobre a tela negra pode ser eficaz e pertinente, quando este momento chega, o espectador já não recebe o som-sem-imagem com o mesmo impacto que o recurso teria em um desenvolvimento mais empático para com as platéias que o apreciariam mais com menos pretensão "estilísitca".
A armadilha da opção narrativa que incorre em um certo grau de desmesura é que o filme perde parte de sua força e pode deixar a impressão de que a analogia central (e tese) foi igualmente desmesurada: seria uma aproximação "exagerada" , em vez de ser uma triste e real (mais do que) coincidência entre formas mais ou menos radicais de abandono do que seria o "humano" quando visto como uma "questão" que é transformada em “problema” (como comenta um personagem); ou em um “obstáculo” a ser afastado para a dominação através da prevalência de uma nem tão nova “lei da selva” e do “mais forte” política e economicamente: por quem usa nossa força de trabalho, enfraquecida porque sugada e abandonada em nome da otimização da "produção" e produtividade acima de tudo e de todos.
# A QUESTÃO HUMANA (LA QUESTION HUMAINE)
França, 2007
Direção: NICOLAS KLOTZ
Roteiro: ELISABETH PERCEVAL e NICOLAS KLOTZ (baseado em livro de François Emmanuel)
Fotografia: JOSÉE DESHAIES
Edição: ROSE-MARIE LAUSSON
Música original: SYD MATTERS
Elenco: MATHIEU AMALRIC, MICHAEL LONSDALE, LOU CASTEL, EDITH SCOB, JEAN-PIERRE KALFON, VALÉRIE DRÉVILLE, LAETITIA SPIGARELLI.
Duração: 142 minutos