Críticas


MOSTRA ALAIN RESNAIS NO CCBB: MELÔ

De: ALAIN RESNAIS
Com: SABINE AZÉMA, PIERRE ARDITI, ANDRÉ DUSSOLIER, FANNY ARDANT
26.08.2008
Por Luiz Fernando Gallego
ALAIN RESNAIS E A ESSÊNCIA DO MELODRAMA

O título de Melô pode ser uma alusão a “melodia”, já que os personagens centrais são músicos. Mas também pode se referir a “melodrama”, gênero que envolve narrativas cujas convenções de forma e conteúdo são bem tradicionais e bastante popularizadas, sem arriscar inovações nem pretender criatividade. Envolvem freqüentemente recursos de enredo já bastante conhecidos, muito utilizados e até mesmo previsíveis, como coincidências e mentiras trazendo infelicidade para os personagens. Isto pode descambar para o lacrimoso e o kitsch, mas não há impedimento absoluto de que este mesmo formato possa ser utilizado por artistas talentosos que muitas vezes conseguem resultados sólidos e inovadores, ainda que preservando regras do estilo-padrão. Muitos alcançam resultados dramáticos admiráveis, longe do banal que lhe é quase inerente - mas, sem dúvida, é um dos gêneros mais “difíceis” pelas armadilhas de seus "ganchos" corriqueiros.



Entre 1955 e 1963, Alain Resnais respondeu as consultas promovidas pela revista Cahiers Du Cinéma sobre os “melhores filmes do ano”. E, na contra-mão das opiniões dominantes tanto do público (que também votava) como dos editores e críticos franceses que escreviam para o Cahiers, na sua lista de 1962, o futuro diretor de Melô incluiu o melodrama Infâmia (Children’s Hour) que William Wyler havia refilmado no ano anterior. A peça de Lillian Hellman já havia sido levada às telas pelo mesmo Wyler em 1936, mas com um roteiro que expurgou o caráter homossexual da calúnia levantada por uma menina sobre suas professoras.



Resnais voltaria a mencionar este filme em 1976 quando participou de uma votação feita pela Real Cinemateca da Bélgica sobre quais os 30 filmes norte-americanos mais subestimados e/ou esquecidos até aquela data. Esta pesquisa era paralela a outra, que buscava determinar os 30 filmes americanos mais importantes de todos os tempos. Ao lado das “figurinhas fáceis” Cidadão Kane, Aurora (de Murnau), Cantando na Chuva, Um Corpo que Cai (além de outros filmes de Welles, Hitchcock, Ford, Griffith, Chaplin, Capra, Lubitsch, Kazan, Fritz Lang, Altman e Cassavettes, dentre outros), Resnais citou Fogo de Outono (Dodsworth) que o mesmo Wyler dirigira, também em 1936.



Portanto, pode-se perceber que o interesse pelo melodrama “contido” - gênero do qual Wyler foi um dos maiores mestres, como demonstram, além de Infâmia, Jezebel, A Carta, Tarde Demais e Perdição por Amor - já existia em Resnais como motivação muito antiga, resultando na mise-en-scéne (como ele mesmo chamou sua direção de 1986) para esta que é a quinta versão cinematográfica da (em ´86) esquecida e datada peça teatral de 1929 escrita por Henri Bernstein, autor francês malquisto por sua origem judaica na onda de anti-semitismo europeu já dos anos 1920.



Dentre as coincidências nos enredos de melodramas de Wyler e as reviravoltas deste filme, podemos lembrar duas. Assim como em Infâmia uma das professoras (interpretada por Audrey Hepburn) manterá um segredo sobre a outra (vivida por Shirley MacLaine), em Mélo, a verdade sobre uma das personagens ficará ocultada por duas outras.



E em outro melodrama clássico de Wyler, Pérfida (The Liittle Foxes, 1941, também originalmente um texto teatral de Lillian Hellman) a personagem de Bette Davis (fotografada em primeiro plano) deixava de entregar ao marido doente (visto no fundo da cena) o remédio que talvez pudesse salvá-lo.



A cena é famosa, tendo servido de exemplo e sido exaustivamente analisada em um famoso estudo de André Bazin sobre a técnica desenvolvida pelo grande fotógrafo Gregg Toland (de Cidadão Kane e de vários filmes de Wyler), a profundidade de campo como linguagem opcional à montagem.



Mas em Mélo, mais do que não dar o remédio salvador, temos até mesmo envenenamento ativo.



E é curioso, no entanto, observar que o uso da profundidade de campo, tão típica dos melhores filmes de Wyler, era vista (por Bazin) como antagônica ao privilégio dado à montagem; mas Resnais (que tanto apreciou - pelo menos os dois inicialmente citados- filmes de Wyler) foi considerado um cineasta que privilegia a edição a ponto da montagem de seus filmes ser referida aos recursos e teorizações de Eisenstein.



Outras diferenças: ao contrário da abordagem melodramática com toques de ironia (ainda que com certa ternura) de Almodóvar, e da recriação de Fassbinder para os melodramas à moda de Douglas Sirk, Resnais se aproxima da peça de Bernstein de modo respeitoso – mas também com um certo (e discreto) distanciamento.



Realizado com orçamento relativamente pequeno e com prazo de filmagem limitado a 21 dias, Resnais e sua equipe tiveram, por outro lado, bom tempo prévio de ensaios – como se fosse uma encenação teatral. O resultado final não denuncia as restrições; pelo contrário, podem-se observar as vantagens do processo de produção, com destaque para os desempenhos dos atores (habituais em filmes de Resnais), a fotografia de Charlie Van Damme, os figurinos de Catherine Leterrier, e – sobretudo – a direção de arte de Jacques Saulnier. Esta envolve interiores admiráveis em sua funcionalidade dramática, mas também com recriação da estética dos anos ´20 com extremo bom gosto, além de cenários “artificiais” - como em cenas do mais anterior Providence e que iriam reaparecer cada vez mais em filmes posteriores (Smoking/No Smoking, Na Boca Não e Medos Privados em Lugares Públicos).



A “teatralidade” cenográfica em Resnais já se anunicava (intensamente) em Marienbad, mas foi ganhando cores e estilização de intencionalidade “artificiosa”, embora nem sempre de modo tão harmonioso como em Melô. Se em Medos Privados... a mise-en-scéne é extraordinária para um roteiro com mais banalidades do que interesse, aqui as "banalidades" (e o "ridículo da vida") são parte inerente à história apresentada, colocando em foco a discussão da fidelidade através da mentira, ou seja, uma “desordenação” da moral padronizada habitual dos melodramas-tipo.



Mais do que uma forma de “filmar teatralmente”, já se disse que este filme tem uma estrutura “musical”, só que mais marcante do que em outros filmes do cineasta, nos quais as vozes dos atores (especialmente a de Delphine Seyrig) soavam quase como instrumentais. Aqui, a estrutura mesmo seria equivalente às formas e movimentos de composições musicais como a Sonata para Violino e Piano op.78 de Brahms - que por duas vezes “une” dois de três personagens em sua execução (nunca desenvolvida). Os atores têm direito a “trios”, “duetos” e mesmo “solos” – como um longo monólogo de Dussolier nas primeiras cenas, narrando um desencanto amoroso e seu ciúmes, trecho (e situação de seu personagem com seus ouvintes) que praticamente antecipa o que vai se desenvolver logo em seguida.



Mas acima de tudo, o filme parece nos dizer repetidamente que “verdades melodramáticas” não são universais e podem ou devem ser subvertidas: tal como no apreciado por Resnais (e subestimado) Infâmia, nem sempre o que se omite preencheria a categoria do que seria “ruim” - e nem sempre o que se poderia dizer de “verdadeiro” será necessariamente “bom”.



# MELÔ (MÉLO)

França, 1986

Direção: ALAIN RESNAIS

Roteiro: ALAIN RESNAIS, tirado da peça de HENRI BERNSTEIN

Fotografia: CHARLIE VAN DAMME

Edição: ALBERT JUGERSON

Direção de Arte: JACQUES SAULNIER

Música Original: PHILIPPE GÉRARD

Elenco: SABINE AZÉMA, PIERRE ARDITI, ANDRÉ DUSSOLIER, FANNY ARDANT.

Duração: 112 minutos

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