(Texto escrito por ocasião do Festival do Rio 2008)
O título Leonera pode ser traduzido (literalmente) como “jaula de leões”, o que no caso de um filme passado em penitenciária feminina, em setor de mulheres grávidas ou já com seus filhos pequenos, seria uma “jaula de leoas”.
Mas o dicionário também ensina que “leonera” também se refere, figuradamente, a "aposento habitualmente desarrumado que costuma haver nas casas de famílias grandes". E a desarrumação é enorme na vida de de ‘Julia Zárate’ (Martina Gusman, em desempenho excepcional) cuja família não é nada grande. Na verdade, ela é uma personagem muito solitária. Aos poucos, em falas fragmentárias, o espectador será informado de que sua mãe reside fora da Argentina há 13 anos e que Julia (que tem em torno de 25 e é estudante) ficou anteriormente, bem jovem, cuidando de seu pai enfermo, agora já falecido.
Os fatos que desencadeiam o drama mostram que ela fazia escolhas bem complicadas ao se conformar (submetendo-se de modo passivo?) a um namorado que havia levado o namorado dele para morarem todos juntos. Como este triângulo interagia mais exatamente, não saberemos, havendo diálogos que sugerem que o filho que ela espera poderia ser de um ou de outro.
O filme pode desnortear o espectador que espera encontrar um drama de mistério policial: suas primeiras cenas mostram um apartamento totalmente desarrumado em que houve uma briga de faca na qual um dos rapazes foi morto, o outro gravemente ferido e Julia parece não saber o que aconteceu. Estariam sob efeito de drogas? Mas nem isto é mencionado nas poucas cenas que mostram o inquérito criminal. E o mistério sobre a amnésia de ‘Julia’ não será esclarecido.
Para complicar o homem sobrevivente (Rodrigo Santoro, bastante correto em suas breves cenas) também diz não saber exatamente o que aconteceu, mas joga a culpa sobre a moça para se ver livre. Fica em aberto se eles dizem a verdade sobre o que lembram e o que não lembram, o que sabem e o que não sabem - incluindo a paternidade que Julia atribui ao namorado que ela pode ter matado (ou não) durante a tal grande briga (que nenhum vizinho escutou?).
Este fio de situação de base só serve para disparar o que é, de fato, o interesse semi-documental do filme: a vida em uma prisão de mulheres que são (ou serão) mães e que ficam com seus filhos até que eles completem 4 anos de idade. A ênfase do recorte é sobre a personagem central em torno de quem o filme orbita e que parece ser uma moça oriunda de classe média (alta?), agora em companhia de mulheres muito simples, rudes e pobres. Os crimes ou os motivos pelos quais as outras estão presas irão interessar menos ainda ao roteirista: o que importa é o cotidiano do presídio, os modos de relacionamento e de sobrevivência.
Não se trata de um filme vulgar como tantos bem antigos que buscavam cenas escandalosas de homossexualismo ou de violência entre mulheres, embora envolvimentos afetivos por carência levem à intimidade sexual - e revolta, desespero, agressividade e destruitividade estejam naturalmente presentes.
Na verdade, o diretor (e co-roteirista) Pablo Trapero nos traz uma variação da mesma situação de seu filme anterior, o muito menos bem-sucedido Nascido e Criado. Em ambos, temos um personagem com a vida revirada de cabeça para baixo e que terão que se adaptar no sentido de praticamente se reinventarem para sobreviver a grandes adversidades. No filme anterior (inédito comercialmente no Brasil mas que foi exibido no festival do Rio 2007), a perda da família (sempre as perdas nos relacionamentos), a natureza inóspita, um trabalho muito árduo. No novo filme, além das perdas - antigas e atuais -, o inferno da carceragem e o caminhar de uma justiça que parece tão lenta como a brasileira: o bebê que ela espera no início vai nascer e segue crescendo até o final do filme.
Como em Nascido e Criado, há detalhes (ou falta de detalhes) no roteiro que parecem não interessar mesmo ao Trapero-roteirista, já que o que importa para o Trapero-cineasta é olhar (e mostrar) a situação que se estabeleceu com o desenvolvimento dos poucos dados inicais. Como foi dito acima, isto pode confundir o espectador que venha a se sentir até mesmo um pouco enganado com a menção a aspectos da história anterior de Julia que não serão esclarecidos. Ou seja, se o filme pode parecer que seguiria uma linha de investigação e resolução de fatos obscuros, isto não acontecerá – o que pode frustrar quem não aceitar o filme como ele é, e cujo foco central vai se delinear sobre a relação mãe-e-filho que é observada entre as mulheres presas e suas crianças.
E que lembra aquilo que se diz das leoas (e outras fêmeas do mundo animal) superprotetoras em relação a suas crias, mas não deixando de lado os conflitos que surgem quando a maternagem parece ter falhado: a mãe de Julia é uma personagem que talvez mostre a diferença que faz a falta de relações de apoio afetivo e emocional - talvez uma mãe distante e egocêntrica, ainda que proveniente de um meio sócio-econômico-cultural propício, muito diverso do ambiente das companheiras de Julia na cadeia.
Mas quem vai buscar "explicações" através de um certo psicologismo que "justificaria" Julia como "vítima" é a personagem de uma advogada de defesa, nunca o filme que jamais faz dela uma figura necessariamente “simpática” – a não ser no que diz respeito à sua relação com o filho.
Para esta linha tênue onde transita a personagem é fundamental a interpretação da atriz (que é mulher do diretor), totalmente afinada com um certo grau de distanciamento que Trapero adota ainda mais intensamente do que na interpretação de Martina Gusman: os enquadramentos, movimentos de câmera, elipses, e o olhar do cineasta revelam (e desvelam) diferentes aspectos deste drama - sem derramamentos melodramáticos passionais, mas sem deixar de causar impacto e convidar à reflexão.
E é na linguagem cinematográfica afiada em si mesma e no desempenho da atriz (preterida em Cannes pela que fez outra "mãe", no brasileiro Linha de Passe) que se encontram as maiores qualidades do filme e de sua narrativa a serviço de como e do que quer mostrar.
# LEONERA (LEONERA)
Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008
Direção: PABLO TRAPERO
Roteiro: Alejandro Fadel , Martín Mauregui , Santiago Mitre , Pablo Trapero
Fotografia: Guillermo Nieto
Edição: Ezequiel Borovinsky, Pablo Trapero
Direção de Arte: Coca Oderigo
Elenco: Martina Gusman, Rodrigo Santoro, Elli Medeiros Laura García , Tomás Plotinsky
Duração: 113 minutos
Site oficial: http://www.leoneralapelicula.com/