Críticas


FESTIVAL DO RIO 2008: UM CORAÇÃO SIMPLES

De: MARION LANE
Com: SANDRINE BONNAIRE, MARINA FOÏS, JOHAN LIBÉREAU, THIBAUlT VINÇON, PASCAL ELBÉ.
03.10.2008
Por Luiz Fernando Gallego
DA PALAVRA EXATA AO ENQUADRAMENTO EXATO

Este filme da também atriz francesa (aqui desconhecida) Marion Lane revela-se uma surpreendente estréia na direção em longa-metragem: ela não brincou em serviço ao escolher adaptar para as telas a famosa novela de Gustave Flaubert, Um Coração Simples - que antes só havia sido filmada pelo cinema italiano sem repercussão entre nós. Romances do mesmo escritor - como Madame Bovary - já receberam várias versões para película, mas este conto talvez seja daquelas obras “sagradas” e intocáveis para os franceses, quem sabe por envolver uma situação difícil de traduzir em imagens, ou seja, a vida interior de ‘Felicité’, uma mulher de inteligência limitada, ou melhor dizendo, naïve a ponto de enfrentar um touro para defender os patrõezinhos, “não enxergar nada além da ponta do nariz” (como diz sua patroa quando Felicité, por ter perdido o contacto com uma irmã, a supunha morta) e por sua ligação intensa com um papagaio de estimação – que virou título de um livro recente, O Papagaio de Flaubert.



Para cinéfilos não familiarizados com o estilo literário de Flaubert nesta obra, poderíamos dizer que equivale ao formato das narrativas visuais ascéticas de Robert Bresson. Sem pretender imitar Bresson, Marion Lane evoca alguma coisa da linguagem do autor de Mouchette (que deve ser lançado em breve como dvd no Brasil) e algumas vezes Um Coeur Simple faz lembrar de Dreyer. Também podemos recordar o estilo “neutro” da recente adaptação francesa de Lady Chatterley, mas é, acima de tudo, com a quase "influência" da presença magistral (e quase minimalista, quando pertinente) de Sandrine Bonnaire que a diretora estreante consegue inaugurar muito bem sua carreira com este filme já premiado no Festival de Moscou deste ano.



A atriz que tem em seu currículo outras grandes participações em filmes de Rivette, Chabrol e Pialat, dentre outros cineastas experientes, foi vista mais recentemente por aqui em Confissões Íntimas (2004), um papel completamente diverso desta ‘Felicité’ cuja composição em pequenos detalhes, alternando momentos de “apagamento” com outros de explosão é realmente admirável. O riso entre ingênuo, surpreso, infantil e franco que a atriz consegue em vários planos fechados em seu rosto é exemplo de anti-caricatura pela interiorização que obtém de uma personalidade "rasa", mas capaz de"sentir em segredo", como lembra-nos uma variação do título de um romance de Autran Dourado frequentemente comparado ao conto de Flaubert.



O roteiro faz algumas mudanças no enredo original e habilmente lhe é muito fiel, ainda que abrindo mão da mais intensa economia verbal de Flaubert no auge de sua busca por “le mot juste”, algo como uma obsessão pela palavra exatamente adequada - e não outra. O equivalente cinematográfico seria a sensação de que os enquadramentos, os ângulos de cada tomada, os cortes, a edição, os movimentos de câmera, o plano escolhido para cada momento não poderiam ser outros. E o filme transmite essa impressão de exatidão, sendo capaz de comover através de uma narrativa mais “seca” do que enfática ou pleonástica. A única (muito) relativa exceção é o uso diegético da “Sarabanda” da 5ª. Sonata para Cello de Bach que Bergman usou em vários de seus filmes, e que também é um exemplo de síntese entre grande emoção e enorme contenção.



Outras cenas, sem música “de fundo” na trilha, atingem o espectador pela beleza crua, tanto numa cena erótica entre a patroa e o profesor de violoncelo, filmada inicialmente à distância , como no momento tocante em que ‘Felicité’ lava o corpo de uma morta com imagens para uma antologia de beleza plástica no cinema (outra "Pietá"?). O empenho visual não é pelo “bonitinho”, mas pelo requinte estético.



O mundo rural de Flaubert e as relações sociais são definidas de modo cortante: a empregada dedicada (até por suas limitações e submissão) é praticamente explorada pela patroa, Madame Aubain (Marina Foïs também precisa em um papel pouco simpático). Apenas quando situações de grandes perdas atingem a egoísta e avara patroa, é que a relação que ela tem com Felicité ganha algum colorido de consideração e não só de exploração de uma agregada “da casa” - algo bem típico também da cultura do patronato de nossas classes mais privilegiadas que se acostumaram com a pequena transformação dos escravos em empregados para serviços domésticos.



O carinho da diretora pelo texto flaubertiano é evidente e, segundo ela, vem desde sua infância quando o teria lido pela primeira vez: “Foi a obra que abriu meu caminho para os livros e o caráter da heroína que se sacrifica e sacrifica tudo pelos outros foi o que me inspirou desde então. Antes de mais nada eu quis refletir o clima daquele tempo e compreender os silêncios que dificilmente encontramos hoje, mesmo em vilarejos distantes. Apesar dos costumes de época e da reconstituição histórica, acho meu filme muito contemporâneo: naturalmente, eu pretendi criar algo atemporal com base nas personalidades das mulheres.”



Como foi dito anteriormente, uma comparação literária freqüente (e de suas respectivas personagens, ´a prima Biela´ e ´Felicité´) é feita entre o romance de Autran Dourado, Uma Vida em Segredo e o conto de Flaubert. Seria interessante confrontar os resultados obtidos pela cineasta francesa com a nossa Suzana Amaral quando levou o livro de Dourado para as telas.



(LEP) - 14 anos

QUI (2/10) 12:00 Estação Botafogo 1 [EB143]

QUI (2/10) 18:00 Estação Botafogo 1 [EB146]

SAB (4/10) 20:20 Est Vivo Gávea 2 [GV244]

DOM (5/10) 22:00 Est Vivo Gávea 1 [GV150]

TER (7/10) 14:00 Est Barra Point 1 [BP156]



# UM CORAÇÃO SIMPLES (Un Cœur Simple)

França, 2008

Direção: MARION LAINE

Roteiro: Marion Laine e Nicolas Peufaillit, baseado em conto de Gustave Flaubert.

Fotografia: Guillaume Schiffman

Edição: Juliette Welfling

Música: Cyril Morin

Elenco: SANDRINE BONNAIRE, MARINA FOÏS, JOHAN LIBÉREAU, THIBAULT VINÇON, PASCAL ELBÉ, PATRICK PINEAU.

Duração: 105 minutos

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