Texto revisto a partir do que foi publicado durante o festival do Rio 2008
Un Secret (título original) é baseado em livro autobiográfico (Prêmio Goncourt des Lycéens de 2004) do psicanalista francês Philippe Grimbert que se dedica ao tratamento de crianças autistas. Recentemente foi lançado em tradução brasileira pela Editora Record, tendo o mesmo título dado ao filme entre nós: Um Segredo em Família.
O romance retrata a história familiar de Grimbert, história que lhe foi escondida durante muitos anos. Ele era um menino frágil que percebia desapontar intensamente seu pai, Maxime, um apaixonado por esportes e atletismo. Este pai era um judeu bem assimilado nos anos 1930 a ponto de se considerar, antes de tudo, “um francês”. Para não denunciar suas origens ele modifica para "Grimbert" o sobrenome original – Grinberg -, por ser este muito típico e “denunciador”. Ser judeu chega a parecer um certo incômodo para Maxime - e em algum momento ele acaba sendo chamado de “anti-semita” por seus familiares.
Filme e livro trazem a chancela de fidelidade para com uma história realmente acontecida, abrindo-se em cenas que transcorrem em 1955 e que enfatizam uma construção imaginária do então pequeno Philippe – que no filme foi renomeado François. Mais do que um “amigo imaginário”, François inventou “um irmão mais bonito, mais forte, carismático e atlético”. Enquanto Tania, sua atraente mãe (Cécile de France, que surge belíssima) pula com maestria do trampolim da piscina do clube que freqüentam, o menino mal entra na água, sente frio, quer ir para casa. Mas o “irmão” mergulha bem, nada bem, é hábil em ginástica olímpica. Durante o jantar, ele quer colocar mais um prato na mesa “para o irmão”, mas à noite é assaltado por pesadelos onde se vê em desvantagem frente às habilidades do “outro” mais atirado, ousado, destemido.
O menino inventa também uma história cor-de-rosa para a vida de seus pais e demais parentes durante a guerra, o que é bem interessante do ponto de vista de verossimilhança para com a realidade psíquica de nossos desejos, fantasias, devaneios, sonhos, enfim, com nosso “mundo interno” em geral.
Um aspecto que sugere o psicanalista por trás do escritor é visto nas cenas passadas em 1985, quando François, já adulto (interpretado por Mathieu Amalric, que também faz a narração em off) é avisado que seu pai está vagando pelas ruas depois que saiu para passear com o cachorro de estimação - mas o animal, sem coleira, acabou atropelado. Há uma analogia implícita com o conceito de après-coup descrito por Freud, quando um evento muito anterior a outro da atualidade vai ecoar com repercussão traumática no presente e bem mais do que na época do fato passado. Aparentemente, seria a morte do cão que tanto abate Maxime agora bem idoso - e muito mais intensamente do que o que teria de fato acontecido durante a ocupação nazista na França (que se manteve durante tanto tempo como objeto de segredo para o filho e óbvia tentativa de negação por parte de seus pais). O filme se desenvolve em vários saltos no tempo, entre 1985, 1962, 1955 e pouco antes e durante a ocupação nazista na França.
Uma das intenções do diretor Claude Miller terá sido a de abordar os perseguidos não como de hábito - uma massa informe de vítimas - mas sim como pessoas que tiveram um rosto, passavam por desencontros amorosos, tramas familiares, paixões, ressentimentos, culpas. A intensidade da atração sexual entre Maxime e Tânia é bem realçada através dos olhares acintosos na composição dos atores Cécile de France e Patrick Bruel que exalam sensualidade e beleza física. Ela confirma que não precisa ser sempre a mocinha sorridente de Um lugar na Platéia, por mais que seus deslumbrantes sorrisos também se façam presentes, só que desta vez longe do tom “glicosado” do filme que lhe trouxe alguma fama no Brasil: em roupa de banho, vestindo roupas clássicas como manequim (modelo) de alta costura, ou despida na cama, a atriz, além de tudo, tem um bom desempenho, em clave de adequada discrição (exceto quando olha para Maxime). Para encanto da platéia feminina diríamos que Patrick Bruel pode lembrar Yves Montand - e seu desempenho, surpreendentemente, não foi indicado ao prêmio César, o chamado “Oscar francês”, no mesmo ano em que todos os demais atores principais foram nomeados - embora apenas Julie Depardieu tenha sido laureada como coadjuvante - aspecto questionável, já que Ludivine Sagnier abdica até mesmo de sua beleza para uma interpretação comovente em papel não-protagonista.
O filme aborda pontos delicados e que se desejaria que nunca tivessem existido: o nazismo em si mesmo, é claro; mas também os aspectos íntimos envolvidos ou/e agravados pela tragédia que foi aquele período, não só no que se refere aos grandes carrascos: as fragilidades e fraquezas humanas podem vir à tona em tais circunstâncias.
O desejo de que as coisas fossem menos complexas e até mesmo edulcoradas corresponde à atitude infantil de François-criança ao recriar um passado idílico para seus pais durante a guerra. E corresponde à negação dos adultos. Mas a realidade é outra e os segredos só fazem mal à história de cada um e - claro - à História com “H” maiúsculo, na medida em que se negaria o passado que permite tentar compreender algo presente.
O tema da identidade étnica (no caso, judaica) poder ser negada com a finalidade de sobreviver - ou por outros motivos – também está presente e abordado com maior complexidade (e mesmo riqueza cinematográfica) no filme de Amos Gitai, Mais Tarde você vai compreender, exibido no mesmo Festival do Rio de 2008 quando este Um Secret foi visto pela primeira vez no Brasil.
Os fatores que propiciam a trama familiar (que se vai querer esconder) têm muito a ver com aspectos humanos que existem independentemente do nazismo. Não se trata de cobiça material (propiciada pela barbárie e/ou privações das guerras), mas de um drama burguês que poderia ter o mesmo desenvolvimento complicado fora do cenário da II Guerra e do anti-semitismo.
O diretor Claude Miller já abordou antes situações de desvantagem emocional para crianças em A Pequena Ladra (roteiro que Truffaut não pôde filmar antes de morrer) e em Classe de Neige, exibido há dez anos em um Festival do Rio, mas absurdamente inédito comercialmente por aqui. Betty Fisher e outras histórias é outro filme de Miller que também fala de vicissitudes ligadas à infância e chegou a ser lançado em DVD no Brasil.
Com Um Segredo em Família, ele recebeu o ´Grand Prix des Amériques´ no Festival de Montreal 2007 além de 11 indicações ao "César", incluindo melhor filme, direção, fotografia, vestuário, edição, música, cenários, roteiro adaptado e desempenhos das 3 atrizes principais (Cécile de France, Ludivine Sagnier e Julie Depardieu - esta, premiada)
# UM SEGREDO EM FAMÍLIA (Un secret)
França/Alemanha, 2007
Direção: CLAUDE MILLER
Roteiro: Claude Miller e Natalie Carter, baseado no livro de Philippe Grimbert.
Fotografia: Gérard de Battista
Edição: Véronique Lange
Música: Zbigniew Preisner
Vestuário Jacqueline Bouchard
Elenco: Cécile de France, Patrick Bruel. Ludivine Sagnier, Julie Depardieu, Mathieu Amalric,
Duração: 100 minutos