Em Foi apenas um Sonho, os lances cotidianos da vida do casal interpretado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet poderiam dispensar o desenvolvimento (que aqui não será comentado) do final do filme: afinal, as brigas e discussões diárias são bem dramáticas, naquela base em que se “diz tanta coisa que não se quer dizer” seguidas de reconciliações em clima “faz-de-conta-que-nada-aconteceu”. Podemos até pensar em uma espécie de “Quem tem medo de Virginia Woolf ?” fora de campus universitário, em idade mais jovem e mais “classe média”. O mal-estar do aprisionamento adaptativo de vidas conjugais e sociais que não querem caber (e não cabem mais) em modelos idealizados - e por isso fracassam - lembra algo da peça de Edward Albee, filmada por Mike Nichols na mesma década de 1960 em que foi publicado o romance que deu origem a este filme.
Mesmo que tudo comece em uma festa de jovens, provavelmente no finalzinho da década de 1940, quando o casalzinho dança e se encanta um com o outro, já na cena seguinte os encontramos casados há alguns anos e com filhos na faixa de seus 5, 6 anos. A esposa fez uma incursão como atriz em espetáculo teatral, não sendo bem sucedida - o que traz o primeiro desentendimento em alta voltagem a que o espectador tem acesso. Eles residem em uma boa casa afastada do centro da cidade, parecida com tantas de seriados de TV daqueles anos (como a casa de Papai sabe tudo). As cenas domésticas, especialmente na copa, no café da manhã, poderiam pertencer a anúncios de margarinas adotadas e adoradas pelas “famílias felizes” do mundo irreal da propaganda.
Tal como em seu premiado Beleza Americana, o diretor Sam Mendes, agora com roteiro extraído do livro de Richard Yates, faz um retrato cruel da “suburbia” norteamericana com construções em centro de terreno, gramados verdejantes, jardins bem-cuidados – como se este fosse o ápice de um “sonho americano”, no entanto, perpassado por pesadelos de frustrações.
A personagem ‘April’ (Kate Winslet) tem alguma consciência do mal-estar que aflige a dupla: comenta que eles se consideram “especiais”, mas são iguais a todo mundo. E provavelmente, nas entrelinhas, menosprezam os outros como “não-tão-especiais”. Mas ela não abre mão de tentar ir adiante, pautada por sua auto-imagem superestimada. Depois do fracasso da dona-de-casa como atriz, ela propõe uma reviravolta na vida familiar através de um projeto excêntrico em relação ao conformismo burguês dos vizinhos e amigos: pensam seriamente em trocar sua cidadezinha por Paris! (onde o maridão esteve durante a II Guerra e da qual fala como se fosse o melhor lugar do mundo).
O desafio será resistir a um “choque de realidade” quando ‘Frank’ (Leonardo DiCaprio) receber uma oferta de salário bem mais alto e melhor posição no emprego que detesta. Já o desafio para o diretor Sam Mendes e para o segundo roteiro escrito por Justin Hayte seria o de evitarem a ênfase excessiva em detalhes (nem sempre tão pequenos deles dois) e que explicitam as ambigüidades de April e de Frank, tanto em dupla como as de cada um. Sem conhecer o livro (muito elogiado por escritores famosos), fica a impressão que, tal como está no filme, o personagem ‘John’ - que diz o que quer sem a menor hipocrisia social, o que é “justificado” por estar em tratamento psiquiátrico – serve para não deixar dúvidas na platéia quanto às ambivalências do casal e de suas escolhas. Por outro lado, as atitudes e falas do dupla central já deixam bem claro que tentam negar (sem conseguir) seus conflitos individuais e em relação à família que constituíram. Neste sentido, as intervenções socialmente inadequadas de ‘John’ (Michael Shannon, indicado a prêmios por este papel) deixam a impressão de que roteirista e cineasta não acreditaram tanto assim no retrato do casal transmitido por suas ações pessoais e pelos ásperos diálogos que travam.
Sam Mendes parece não querer repetir o tom patético entremeado de lances de farsa que ia às raias da caricatura em Beleza Americana. A ambição aqui é de uma exposição mais "seca" e ainda mais cruel do desencanto de April e Frank: de cada um consigo mesmo e com o outro, aprisionados em auto-imagens descompassadas da realidade medíocre do cotidiano onde “todo dia eles fazem tudo sempre igual” aspirando fazer “diferente”, sem saber nem o que nem como. Mas a imagem à moda de Magritte de uma massa idêntica de homens vestidos de terno-e-gravata e usando chapéus parecidíssimos enquanto esperam o trem que os levará ao trabalho no centro da cidade é outra ênfase, agora visual, igualmente excessiva para caricaturar a mesmice que Frank vivencia em seu trabalho - e na vida rotineira sem perspectivas de mudança.
Estes exemplos fazem supor que os realizadores acham que o espectador carece de cenas “sublinhadas” para captar o cerne social e psicológico dos personagens. Esta falta de sutileza é um mau hábito dos filmes de pretensão “séria” do cinema americano e também poderá ser visto em breve no filme Dúvida - que também disputa prêmios com este Revolutionary Road (título original). Tanto em um como em outro, é como se não fosse suficiente o desempenho de atores competentes em momentos inspirados.
Esta questão também pode ser levantada para alguns aspectos da participação de Kate Winslet, aqui dirigida por seu marido, o que talvez explique a coincidência enfática. Apesar de premiada por este desempenho com o “Globo de Ouro” (em overdose, já que foi igualmente escolhida como atriz coadjuvante em outro filme, mas pelo qual concorre ao Oscar de atriz principal!), ela incorre em alguns momentos de certo overacting, principalmente, ao ser “explícita” quando a personagem mente ou dissimula. É como se ela precisasse “dizer” à platéia que “agora ‘April’ não está sendo sincera, às vezes nem com ela mesma”. Um exemplo está em uma das suas primeiras cenas com Kathy Bates, que faz a mãe do perturbado ‘John’ e pergunta a ´April’ se poderia recebê-la em companhia do filho que terá uma licença da internação psiquiátrica. Bates está mais contida do que de hábito e se mostra excepcional nas hesitações do pedido, mas Winslet aceita o pedido da amiga mais velha com acolhimento obviamente fingido e desconforto tão transparente que a outra personagem correria o risco de perceber.
É verdade que o papel exige muito da atriz e ela está bem em muitas cenas, mesmo que derrape nas vezes em que, após um “barraco” com o marido na noite anterior, reaparece toda sorridente e arrumada como que atendendo à imagem de “esposa modelar” de filmetes de propaganda. Mesmo que em algumas dessas passagens, ‘April’ pudesse estar enganando a si própria, a atriz não precisava deixar tão evidente a farsa da representação da personagem, repetindo em desempenho o recurso da cena dos chapéus ou das falas explícitas do personagem “psiquiátrico”. Já quem consegue manter o clima adequado para seu personagem durante todo o filme é Leonardo DiCaprio, surpreendentemente ausente das indicações para prêmios. Nas cenas em que tenta dizer para a mulher que ela ainda o ama, o ator surpreende pela intensidade, sem escorregar para o ridículo.
Se os produtores reuniram três atores de Titanic (Winslet, DiCaprio e Kathy Bates) para atrair o público para um filme mais árduo, a legião de fãs poderá se surpreender ao ter que lidar com um drama realista sem nenhum romantismo pretensamente redentor ou apaziguador. Mesmo com as questões levantadas quanto a aspectos da narrativa, Foi apenas um Sonho deixa uma impressão muito forte sobre desencantos e descompassos. E mais uma vez cabe destacar a fotografia de Roger Deakins, pertinente para este filme, tão diferente dos tons que usa para outros filmes em que sua contribuição sempre colabora para os melhores resultados possíveis
# FOI APENAS UM SONHO (REVOLUTIONARY ROAD)
EUA/Inglaterra, 2008
Direção: SAM MENDES
Roteiro: JUSTIN HAYTHE, baseado no romance de Richard Yates
Fotografia: ROGER DEAKINS
Edição: TARIQ ANWAR
Direção de Arte: TERESA CARRIKER-THAYER, JOHN KASARDA, NICHOLAS LUNDY.
Música: THOMAS NEWMAN
Elenco: LEONARDO DiCAPRIO, KATE WINSLET, MICHAEL SHANNON, KATHY BATES
Duração: 119 minutos
Site oficial: www.revolutionaryroadmovie.com