Críticas


LEITOR, O

De: STEPHEN DALDRY
Com: RALPH FIENNES, KATE WINSLET, DAVID KROSS, BRUNO GANZ, LENA OLIN
07.02.2009
Por Luiz Fernando Gallego
“ESSAS PROFISSÕES QUE FAZEM DA MORTE OFÍCIO OU BAZAR”

As primeiras cenas de O Leitor estão situadas em uma época que seria mais próxima de nossos dias, e buscam deixar bem claro para a platéia que pretendem caracterizar o personagem ‘Michael Berg’ na idade adulta como um homem que não consegue se permitir relacionamentos afetivos estáveis: uma mulher que passou a noite com ele explicita esta característica que vai se acentuar no rosto melancólico e introvertido de Ralph Fiennes, surpreendentemente estereotipado ao repetir o semblante apenas aparentemente inexpressivo (porém, sugestivo de encobrir profundas emoções recônditas) que tão bem serviu à sua interpretação de O Jardineiro Fiel. Desta vez o ator não consegue ser bem sucedido, talvez em grande parte devido às limitações do roteiro e construção dos tipos em cena.



Segue-se um grande flashback com episódios passados em 1958, quando encontramos ‘Michael’ aos 15 anos, agora na pele do ótimo David Kross, ator que teve que esperar completar 18 para rodar as incrementadas cenas de sexo com Kate Winslet. Michael passa por uma espécie de “educação sentimental” administrada por uma mulher de extrato social bem modesto, ainda que autoritária e susceptível - e com mais do que o dobro da idade do “menino” (como ela o chama), ‘Hanna’. Ela gosta que ele leia para ela em voz alta; e exige que o faça antes de se entregar às intensas práticas sexuais. Melhor dizer, “amorosas” - do ponto de vista do rapazola.



Os encontros do casal funcionam como uma espécie de “primeira parte” da história. O idílio será interrompido. Talvez porque o “menino” começa a ficar dividido entre Hanna e a companhia de seus colegas, rapazes e moças, da mesma idade, despertando ciúmes e irritação na possessiva amante? Ao mesmo tempo, vemos que ela foi informada sobre uma espécie de promoção em seu emprego: em vez de continuar como bilheteira em bondes, iria trabalhar no escritório da empresa. O fato é que ela desaparece da cidade e da vida do garoto.



Alguns anos depois, já estudante de Direito, ele vai encontrá-la como uma dentre seis mulheres, rés em um julgamento escolhido por um professor da faculdade como tema de discussão com seus melhores alunos. Surgem revelações surpreendentes sobre o passado dela, tema da segunda metade do filme e motivação central para ter sido escrita a trama imaginada por Bernahrd Schlink em Der Vorleser (título alemão do livro já lançado no Brasil com o título traduzido literalmente, O Leitor).



O cinéfilo e o crítico de cinema podem ficar surpresos com os nomes envolvidos na execução deste terceiro filme do diretor Stephen Daldry, co-produção entre Alemanha e Estados Unidos. Daldry assinou anteriormente Billy Elliot (2000) e As Horas (2002), ambos com repercussão predominantemente favorável, sendo que o premiado romance de Michael Cunningham, The Hours, foi roteirizado com sucesso pelo mesmo David Hare que agora adaptou a novela de Schlink.



Falecidos antes de o filme ser completado, Sidney Pollack e Anthony Minghella estão entre os produtores: eles, que eram considerados como representantes de uma “esquerda” hollywoodiana, até onde isto possa ser considerado possível. O filme, entretanto, além (e também por causa) de suas limitações estéticas, pode soar ambíguo, e até mesmo bizarro na abordagem canhestra de graves questões éticas e morais



A surpresa dos que estejam familiarizados com as carreiras dos nomes citados acima virá no caso de concordarem com as avaliações que serão feitas aqui. A primeira questão diz respeito ao filme propriamente dito e ao roteiro filmado, observados como realizações autônomas, independentes de sua origem literária; e a segunda, interroga a discussão moral levantada pelo enredo e como foi desenvolvida.



Formalmente, o produto final se apresenta como tantos outros do “cinemão” norteamericano quando pretende ser “adulto” e “de qualidade”, mas que muito frequentemente escorrega em recursos narrativos bem banais e não necessariamente justificados pelo que parece ser a meta do ambicioso enredo na polêmica figura feminina principal do romance. Ao alternar flashbacks com cenas “atuais”, o que se busca é um clima sentimental “ajudado” por música onipresente e intrusiva. Tudo isso, a serviço de sublinhar o lado “emocional” do filme que não interage satisfatoriamente com a discussão ética que se desenrola (bem mal) nas falas dos personagens e pelas situações inusitadas que vão sendo reveladas.



O resultado de tantos clichês sentimentalóides colabora com o segundo ponto questionado. OBSERVAÇÃO: Embora a trama narrada neste filme esteja divulgada em grande parte no trailer, sinopses e comentários encontrados na imprensa, o texto que se segue aborda aspectos do enredo que só vão se mostrando no decorrer do filme. Mas é muito difícil deixar de discutir estes aspectos que constituem o foco pelo qual tal relato ficcional foi criado. O que bate na tela surge tão mal roteirizado em si mesmo, repleto de lugares-comuns (decupagem, filmagem e edição final) que podem deixar a impressão de que se está ressuscitando a “defesa” da “obediência devida” (e cega) para os atos perpetrados por aqueles que se encontravam na ponta final da máquina de morte nazista: as pessoas que buscaram ou aceitaram um “emprego” na SS e foram trabalhar como guardas em campos de concentração.



Fica ainda muito mal colocada a limitação cultural de Hanna (e principalmente sua vergonha narcisista) como pivô das atitudes e opções que tomou ao longo de sua vida e em seu julgamento: esta limitação seria um quase-álibi para ações (e omissões) no “cargo” que ocupara durante o nazismo? Ela seria talvez uma mulher “simples”, “rude”, e principalmente (?) – OH! analfabeta. E que fez “o que se esperava” dela: não favoreceu jamais qualquer possibilidade de que suas prisioneiras pudessem escapar. Mesmo que se encontrassem em situações de gravíssimo risco. Afinal, ela e as demais colegas de “profissão” já tinham que, mensalmente, “esvaziar” o campo para receber novas prisioneiras. O que era feito pela escolha por parte das seis guardas, cada uma indicando dez prisioneiras para as câmaras de gás.



Há questões de dramaturgia insatisfatória que extrapolam a verossimilhança se pensarmos como Hanna conseguiu ocultar sua incapacidade de ler na burocracia germânica que serviu à “banalidade do mal” de assassinatos em ritmo “industrial” na Alemanha nazista. No filme, esta questão é muito mal resolvida. Assim como são irresponsáveis - por superficialidade e incompletude – as discussões sobre a letra das leis e ética que surgem entre os estudantes de Direito e o professor (Bruno Ganz, muito menos expressivo do que de hábito).



Ficam igualmente ambíguos os impasses que surgem no interrogatório de Hanna pelo juiz que conduz o processo, quando a “ingenuidade” e incultura da personagem pode deixa a impressão de que os realizadores atenuam a gravidade das ações dela imaginadas pelo escritor. Por analogia e extensão, minimizariam o que “gente simples” fez (ou faz) contra seus semelhantes, contra a civilização, contra a moral.



Claro que não se está pretendendo “censurar” o que venha a ser uma tentativa responsável de problematizar aquilo que talvez nunca se possa compreender totalmente sobre os horrores nazistas – e outros tantos absurdos da história da humanidade, mesmo que sem a mesma especificidade da rotina tornada “comum” (e normatizada) para a destruição de vidas “no atacado”. O que questionamos neste filme é a incompetência em levar adiante, de modo sério e consequente, uma proposta que parece ter sido maior do que as pernas do roteiro e da direção, a ponto de deixar no ar idéias provavelmente (supomos) contrárias às pretensões de gente com o currículo do produtor e cineasta Sidney Pollack. Ou será que “vale tudo” para chamar a atenção com temas “diferentes” desenvolvidos de forma insólita? Em princípio, nossa impressão é que a mediocridade predominou e prejudicou os resultados. Os livros que perpassavam As Horas não funcionam bem nesta trama “de amor” (à leitura).



Como apêndice, é importante registrar que, o romance original (lido só depois de assistir o filme) deixará a versão para as telas em ainda pior situação: não sob um ponto de vista meramente “comparativo” entre duas manifestações artísticas diferentes – o que jamais deve guiar a avaliação de cada forma de expressão isolada com suas especificidades. O que cabe ressaltar é que o livro consegue ser algo menos insatisfatório na discussão moral do tema abordado. Embora pareça ser igualmente um produto pobre e de terceira linha do ponto de vista literário; ou seja, também tem mais ambição e pretensão do que capacidade de atingir resultados em um patamar de seriedade e responsabilidade.



Com esta impressão o que se quer é questionar o que seria um “bom roteiro adaptado”, categoria de premiações hollywoodianas. Um roteiro apreciável é um roteiro apreciável, inteiramente à parte do fato de que seu argumento essencial tenha origem em livros ou peças teatrais. Mas aqui, o premiado David Hare conseguiu um péssimo resultado, tanto do ponto de vista do roteiro que vemos na tela, como – pior ainda – em relação à fonte original. Incrível ser do mesmo escritor que roteirizou As Horas - goste-se ou não do filme anterior da dupla de cineasta e roteirista, goste-se ou não do romance de Cunningham: a versão para as telas era eficiente em si mesma e na transposição de uma linguagem para outra. Daí a nossa surpresa com a ruindade deste O Leitor. Com toda a mediocridade do romance, percebe-se a busca de um relato direto e sem tanta ênfase emocional. O autor se esforça para levar adiante uma discussão complexa, e - mesmo que insatisfatória – traz um pouco mais de complexidade do que filme e roteiro (não) conseguem. Basta comparar a opção do filme na cena final melosa de um pai que resolve, enfim “abrir-se” para a filha, contando a história de sua vida que acabamos de ver. Pobre filha!



Incompetente como cinema, carece de palavras explícitas para deixar alguns de seus “recados” que roteirização, filmagem e desempenhos não conseguiram transmitir: é apenas no diálogo entre Ralph Fiennes e Lena Olin, na vigésima-quinta hora, que vai ser sugerido “o mal” que Hanna teria causado a Michael como extensão (ainda que relativamente atenuada) do mesmo mal que Hanna causava por sua “idiotice moral” como agente nazista indiferente a princípios éticos mínimos. Ou se trata de uma crítica a algo que hoje em dia “tem que ser” execrado como pedofilia: mulher de trinta transando com garotão de 15 para 16 anos?



Para concluir, registre-se que, por mais que se esforce, Kate Winslet não consegue a interioridade de uma mulher rude e analfabeta, não só concretamente, mas “analfabeta emocional” (e moral). Mas o que fazer com personagens que já eram artificiais em um livro que (na tradução brasileira de Pedro Süssekind, lançada pela Editors Record) traz na página 238 o seguinte trecho: “As camadas tectônicas de nossa vida descansam tão apertadas umas sobre as outras, que sempre encontramos o fato anterior no posterior, não como algo completo e realizado, mas como algo presente e vivo”.



“Camadas tectônicas de nossa vida”!?!? Pobre tradutor: em alemão isso deve ser pior ainda de se ler! Não dá para pretender conferir o original, mesmo que pudéssemos ler em alemão. O Leitor, livro ou filme, só serve para virar a página.



#O LEITOR (THE READER)

EUA/Alemanha, 2008

Direção: STEPHEN DALDRY

Roteiro: DAVID HARE, baseado em livro de Bernhard Schlink.

Fotografia: ROGER DEAKINS e CHRIS MENGES

Edição: CLAIRE SIMPSON

Direção de Arte: CHRISTIAN M. GOLDBECK e ERWIN PRIB

Música: NICO MUHLY

Elenco: RALPH FIENNES, KATE WINSLET, DAVID KROSS, BRUNO GANZ, LENA OLIN

Duração: 124 minutos

Site oficial: www.thereader-movie.com





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