Em uma de suas primeiras cenas, Katyn mostra uma massa humana atravessando uma ponte. No sentido oposto está vindo outra multidão. Um grupo de poloneses está fugindo de Hitler. Os que vêm do outro lado, fogem da invasão soviética. Está definido o cenário de um dos melhores filmes de Andrzej Wajda, o consagrado cineasta polonês, autor de vários filmes memoráveis desde 1955 - tais como Cinzas e Diamantes e O Homem de Mármore, dentre outros. Infelizmente muitos não foram lançados no Brasil, embora haja alguns em DVDs recentes. De qualquer modo, daqui não se pode ter uma visão mais ampla de sua carreira que soma 51 filmes em 2009, sendo este Katyn o qüinquagésimo, lançado em 2007 e indicado ao Oscar de filme em língua não-inglesa em 2008.
A linguagem cinematográfica é absolutamente clássica, depurada e refinada, servindo-se de ângulos irrepreensíveis para as tomadas de cena e enquadramentos capazes de transmitir a emoção desejada (nem excessiva, nem distanciada demais), especialmente nos planos em que se detém nos rostos das mulheres que esperam notícias de seus parentes. É empático o uso da câmera sobre os rostos das atrizes Danuta Stenka (‘Rozsa’), Maja Komorowska (que faz a mãe do personagem Andrzej) e - ainda mais especial - o semblante de Maja Ostaszewska (‘Anna’, mulher de ‘Andrzej’), que em alguns momentos chega a lembrar a máscara facial da nossa Glauce Rocha (Terra em Transe, Navalha na Carne, primeira versão). Se os desempenhos masculinos também são ótimos, não há dúvida que o roteiro propicia mais oportunidade para as atrizes, sem que nenhuma incorra em overacting para expressr suas angústias e dores.
A fotografia é de Pawel Edelman (de O Pianista, de Polanski), explorando com maestria o claro-escuro nas cenas interiores; e a música – excelente - do grande compositor Krzysztof Penderecki colabora de modo pertinente. O apuro estético exemplar ajuda o espectador no contacto com uma história real que mostra, fora do contexto “absurdo” de Kafka, como a realidade pode ser mais absurda do que a ficção imaginada. Afinal, o filme trata de um massacre a sangue-frio de mais de 15 mil (talvez vinte mil) poloneses, episódio em que o cineasta perdeu seu pai, tal como centenas de famílias polonesas perderam filhos, irmãos, maridos, pais - e o exército polonês foi reduzido quase à metade, sem que houvesse guerra declarada à Polônia, nem por Hitler, nem por Stalin. E as mortes nem foram em campos de batalha!
Hoje com 83 anos, Wajda tratou deste horror através de uma narrativa cinematográfica admirável, sem nenhuma aproximação com a linguagem plena de recursos espetaculosos de filmes americanos que também denunciaram a insanidade das guerras, incluindo aqueles que podem ser considerados obras-primas como o Apocalypse Now de Coppola. Mas o horror é o mesmo - ou ainda maior.
O estilo de Wajda é outro, mas também muito distante de qualquer minimalismo desafetivado. Ele é capaz de usar os movimentos de câmera como em uma escrita literária, permitindo-se enfatizar algumas passagens - como a da reunião dos soldados prisioneiros dentro de um galpão para escutar palavras de resistência de seu General, quando a câmera sobre enfaticamente provocando comoção na platéia. Em outras cenas ele faz nosso ponto-de-vista deslizar horizontalmente, criando ângulos em perspectiva de ruas ou estradas, ampliando o olhar do espectador, incluindo-o na ação, mas sem deixar de nos exigir algum grau de distanciamento reflexivo sobre as barbaridades que mostra.
Talvez preocupado em mostrar repercussões um pouco mais tardias e desmandos em cascata, o roteiro envereda por algumas digressões episódicas dispensáveis que nem sempre se inserem tão adequadamente no painel pretendido; mas isso não chega a diminuir o impacto do filme, embora também não vá além do que já se tem de "essencial", indo da brutalidade de uma universidade invadida pela força estúpida nazista até as mentiras soviéticas que tentaram, por décadas, ocultar a verdade dos fatos que envolveram o massacre que nos faz lembrar da frase final de Kafka em “O Processo”sobre a morte do personagem Joseph K. - pois na floresta de Katyn, cada um morreu “como um cão”.
# KATYN (KATYN)
Polônia, 2007
Direção: ANDRZEJ WAJDA
Roteiro: ANDRZEJ WAJDA, WLADYSLAW PASIKOWSKI, PRZEMYSLAW NOWAKOWSKI, baseado no livro “Post-Morten” de ANDRZEJ MULARCZYK.
Fotografia: PAWEL EDELMAN
Edição: MILENIA FIEDLER, RAFAL LISTOPAD
Direção de Arte: MAGDALENA DIPONT
Música:KRZYSZTOF PENDERECKI
Elenco: MAJA OSTASZEWSKA, ARTUR ZMIJEWSKI, DANUTA STENKA, MAJA KOMOROWSKA, ANDRZEJ CHYRA.
Duração: 118 minutos
Site oficial: http://www.katyn.netino.pl/en/