Críticas


FALSÁRIOS, OS

De: STEFAN RUZOWITZKY
Com: KARL MARKOVICS, AUGUST DIEHL, DEVID STRIESOW
24.05.2009
Por Luiz Fernando Gallego
O FALSO E O VERDADEIRO

Os Falsários aborda um incrível episódio - real - em que nazistas contaram com a colaboração forçada de prisioneiros judeus para falsificação de documentos, passaportes e, principalmente, dólares e libras esterlinas como parte da denominada “Operação Bernhard”. Além de socorrer as combalidas finanças da Alemanha no que já era o início da derrota nazista, um derrame de papel-moeda falso provocaria um abalo irremediável na economia dos aliados (e munidal) - e para isto, imprimiram, com perfeição, 135 milhões de libras, o equivalente ao triplo das reservas cambiais britânicas na época.



O lançamento deste filme austríaco no Brasil somente em 2009, bem mais de um ano depois de ter recebido o Oscar de filme em língua não inglesa, talvez – involuntariamente – provoque alguma reflexão sobre tudo que também é falso no sistema financeiro norteamericano e mundial, atualmente em crise. Mas a intenção original parece ter sido mesmo a de abordar impasses éticos em situações-limite: judeus que, para não morrerem, colaboraram com projetos que atendiam a interesses nazistas. Em mais de um momento eles discutem entre si sobre a responsabilidade de seus atos e um deles argumenta que “ninguém morre por princípios” - ao que outro responde: “É por isso que o nazismo está vencendo”.



E se a Alemanha hitlerista vencesse, certamente os que conheciam este projeto ultra-secreto seriam descartados. Mas até lá, diz Salomão Sorowitsch ("Sally") , considerado o maior falsário do mundo que havia sido preso inicialmente por falsificações, ainda em 1936, e posteriormente foi enviado para campos de concentração por ser judeu: “cada dia é um dia”. E ele luta para sobreviver cada dia: “e não vou dar aos nazistas o prazer de que eu vá sentir vergonha por estar vivo”.



A vida que esse grupo de artistas plásticos, tipógrafos, desenhistas e técnicos em impressão levava era igualmente falsa: separados do restante do campo em que foram alojados, tinham acesso a banhos semanais, camas macias com lençóis limpos, mesa de pingue-pongue e discos – um verdadeiro spa “de luxo” em comparação com a realidade do restante do campo, o que vai permitir uma emocionante cena de confronto entre essas duas realidades onde uma é tão fake quanto as cédulas perfeitas que eles conseguem imprimir.



Criar dificuldades (sabotando os trabalhos) para procrastinar os resultados (sem que isso fosse percebido como intencional ) podia ser uma forma de adiar suas sobrevidas em permanente corda-bamba: pois conseguindo as falsificações impossíveis de serem detectadas, poderiam se tornar dispensáveis e assassinados; mas não atingindo os objetivos, poderiam ser mortos "antes" por não conseguirem atender a proposta pela qual estavam com suas vidas provisoriamente preservadas. Bem que Luchino Visconti propunha (e mostrava) o nazi-fascismo como uma radicalização do capitalismo (lembrar Os Deuses Malditos): em Os Falsários, o que vemos é uma espécie de caricatura radical dos sistemas de trabalho capitalistas selvagens da atualidade, intolerantes com o não-cumprimento de metas nos desempenhos profissionais mais variados e sob enorme pressão.



É interessante também observar o relacionamento do judeu-prisioneiro-falsário ‘Sally’ com o nazista que idealizou o projeto (no filme, renomeado como ‘Comandante Herzog’; na realidade, ele se chamava Bernhard Kruger, cujo prenome batizou a “operação”). Provavelmente em (bom) lance de ficção, o roteiro o caracteriza como outra fraude, um ex-policial que havia prendido Sally antes do nazismo atingir o ápice do poder e que lhe confessa que havia sido comunista anteriormente... mas depois, aderira ao nazismo ascendente; e acrescentando: “Chega de ideais, faço o que for preciso”. Este ‘Herzog’ teria criado uma espécie de “lista de Schindler” composta de falsários? Pretendia deixá-los vivos em caso de vitória alemã? A cena em que ele leva “Sally’ à sua própria casa e sua mulher de tipo bem “ariano” interroga o judeu como se estivesse se dirigindo a uma aberração, a um freak insólito de circo, é das melhores do filme.



Enquanto outros suboficiais nazistas acusam esses judeus de “negociarem com tudo: até com a vida de outros judeus”, de modo bem diferente o personagem (real) Adolf Burger, que era tipógrafo, argumenta ideologicamente, defendendo que uma “impressão tem que imprimir a verdade”. Burger ainda está vivo e foi quem escreveu o livro que serviu de base ao roteiro do diretor Stefan Ruzowtzky, uma história verdadeira que passaria por inverossímil, falsa, se algum roteirista ousasse inventá-la. Como diz uma frase de divulgação do filme.



Outro ponto de discussão ética é trazido pelo perfil desse mesmo Burger, que é apresentado no roteiro como o que mais posterga o sucesso rápido da empreitada, pois é dele, como tipógrafo, que dependem várias medidas técnicas na conclusão das falsificações - enquanto alguns temem que os prazos não-cumpridos precipitem a morte de todos. Um membro da ‘equipe”, isoladamente, teria direito de colocar os outros todos em risco mais imediato? Só que - diz ele - ajudando os nazistas, os riscos aumentariam para muito mais gente além daquele grupo (e provavelmente para eles também, é o que se supõe, a médio - ou nem tão longo - prazo, a partir do momento em que conseguissem as falsificações perfeitas).



Temos ainda um exemplo de uma “ética” peculiar - a chamada “lei do silêncio” - quando ‘Sally’ se opõe a que os demais denunciem Burger aos alemães como sabotador intencional do projeto. Estaria ‘Sally’ seguindo tal “lei”, mafiosa e típica do corporativismo entre parceiros de crime que ignoram a legalidade? Ou talvez se trate de uma verdadeira solidariedade entre companheiros de infortúnio? No caso, judeus perseguidos e prisioneiros. Ou ainda: estabeleceu-se uma ambivalência moral em ‘Sally’? O que fica sugerido é que teria sido seu aspecto ilegal de criminoso por estelionato que permitia a esperança daquele grupo se salvar - ou pelo menos prorrogar suas vidas - pois ele é visto como o artista mais hábil e experiente em falsificações (o que também pode sugerir que em situações de exceção, o crime até que compensa. E isso é verdadeiro ou falso?).



Fora dos cenários do período de guerra, a vida mostrada em cabarés berlinenses (antes) e em cassinos de Monte Carlo (depois) também remetem a algo falsificado, longe do que seria (e é) a realidade cotidiana.



Sem maiores ousadias na direção, o filme pretende ser competente e accessível, apenas um pouco menos realizado nas cenas fora do flashback central que é onde se centra o mais importante do enredo ocupando quase toda a projeção. Fato ou ficção, intencional ou não, a atitude do personagem principal um pouco antes da última cena pode ser vista como atendendo a um certo tom moralista. A discutir.



Os recursos de produção são bem utilizados, a câmera se mostra ágil quando é preciso, e o conjunto de desempenhos é ótimo, com maior destaque para Karl Markovics (‘Sally’) e Devid Striesow (‘Herzog’), cujos papéis têm mais oportunidades e que os dois atores aproveitam muito bem, sendo o herói (?) falsário quase nada “simpático” com sua mímica pouco variada, sisuda e/ou indiferente (com raras exceções); enquanto o nazista aparece sorridente, podendo sugerir que seria verdadeiro em suas promessas... mas sem que se tenha certeza disso.



O uso diegético de uma famosa ária da ópera “Tosca” cantada em uma festividade que os nazistas encomendam aos prisioneiros é mais do adequado, já que – na ópera – também é cantada por um personagem que está injustamente preso e recebeu a promessa de que sua condenação seria falsa (execução com balas de festim)... quando falsa era esta promessa. Aliás, outras músicas usadas na trilha sonora funcionam muito bem, quase sempre tangos muito famosos em criativos arranjos minimalistas com variações sinuosas na linha melódica. Um bom equivalente sonoro das situações do roteiro.



Ao contrário dos recentes Homem Bom que se mostrou frouxo, O Menino do Pijama Listado (pateticamente ridículo) e O Leitor (moralmente abjeto), Os Falsários consegue trazer à baila uma boa discussão ética. Melindrosa, porque envolve pessoas que foram elas mesmas vítimas do nazismo, mas bem conduzida e praticamente sem moralismo piegas.





# OS FALSÁRIOS (DIE FÄLSCHER)

Áustria/Alemanha, 2007

Direção: STEFAN RUZOWITZKY

Roteiro: STEFAN RUZOWITZKY, baseado no livro de Adolf Burger

Fotografia: BENEDICT NEUENFELS

Edição: BRITTA NAHLER

Música: MARIUS RUHLAND

Elenco: KARL MARKOVICS, AUGUST DIEHL, DEVID STRIESOW.

Duração: 98 minutos

Sites oficiais: http://www.thecounterfeitersfilm.com/ e http://www.sonyclassics.com/thecounterfeiters/main.html



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