É provável que parte do público atual (os mais jovens) não tenha acompanhado muito da carreira do ator de rádio, televisão, teatro e cinema, extremamente popular tanto nos anos dourados da Rádio Nacional (quando protagonizou a novela O Direito de Nascer, transmitida diariamente durante dois anos consecutivos) como em novelas da Globo assinadas por Dias Gomes e Jorge Andrade, egressos do teatro - ou adaptadas de Jorge Amado: uma época em que se assistia Gabriela, Bandeira Dois, Ossos do Barão, Casarão ou O Bem-Amado, sendo que esta última foi posteriormente reciclada em sitcom caboclo, tal a repercussão do personagem ‘Odorico Paraguaçú’ encarnado em Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo (nome real de Paulo Gracindo).
Entre o sucesso através do rádio nos anos 1940/50 e a consagração popular televisiva dos anos 1970 com tipos inventados por Dias Gomes (antes de ‘Odorico’ houve o bicheiro ´Tucão´ em Bandeira Dois), o ator passou por um período de menor visibilidade, durante o qual, no entanto, participou de grandes filmes do cinema brasileiro: o emblemático Terra em Transe, de Glauber Rocha, e a obra-prima A Falecida, de Leon Hirzsman, ao lado de Fernanda Montenegro.
Foi também nos anos 1960 que ele retornou ao palco do qual havia se afastado há décadas (devido ao sucesso na Rádio Nacional), surpreendendo a geração de jovens que iam ao teatro na época quando praticamente roubava a cena de atores tão bons como Leonardo Villar e Jardel Filho - por melhor que ambos também estivessem em O Preço, peça de Arthur Miller. É verdade que seu personagem era mais simpático e responsável pelos lances de humor naquele drama familiar: um judeu idoso que ia comprar móveis e peças usadas de dois irmãos em conflito pelo espólio (emocional) paterno.
Mas grandes papéis podem ser grandes oportunidades ou retumbantes fracassos. Com Paulo Gracindo funcionou como uma “revelação” - a de um ator já bem veterano. Os freqüentadores de teatro da época desta encenação que estavam mais sintonizados com experiências do Teatro Oficina (e similares de contra-cultura então em voga) não podiam deixar de se render ao “teatrão” de qualidade do texto de Miller e das interpretações dos atores em formatação mais tradicional. E acima de tudo, desfaziam preconceitos contra aquele “rádio-ator” que também havia sido apresentador de “programas de auditório” de nenhum prestígio cultural.
Apesar de já ter estado nos filmes citados antes de O Preço acontecer nos palcos, o uso que Glauber fizera da personalidade de Paulo Gracindo em Terra em Transe não deixava de ser uma apropriação de sua imagem de ator de tempos “getulistas”, “lacerdistas” e “janistas” - lideranças políticas destronadas pelo golpe de 1964; e A Falecida foi uma versão para as telas de Nelson Rodrigues que, na época, nem Nelson gostou, embora seja um dos filmes menos datados do “Cinema Novo”, capaz de resistir ao tempo como poucos da mesma época.
Todas as facetas da carreira de Paulo Gracindo estão de certa forma presentes no documentário produzido por membros da família do ator, mais especificamente pelo filho também ator, Gracindo Jr. que assina a direção, o roteiro, e traz outros familiares, não só em sensíveis depoimentos na frente das câmeras, mas também em outras esferas do projeto. Há tanto material que algumas passagens servem para conectar a memória dos que viveram aqueles períodos e conhecem as fotos ou trechos de filmes mostrados; mas outros espectadores não saberão exatamente a que se referem.
Além da família de sangue, a “família” teatral também se faz presente em participações de luxo como as de Bibi Ferreira, Paulo José, Eva Wilma e, especialmente, de Fernanda Montenegro que oferece um clímax ao interpretar “O Caso do Vestido”, poema de Carlos Drummond de Andrade: uma forma delicada que os filhos de Paulo escolheram para (não) falar da vida do pai “fora de casa”.
Como se não bastasse, quando Fernanda declama, a platéia já está emocionada por uma interpretação magnífica de Paulinho da Viola para “Naquela Mesa”, canção feita como homenagem do filho de Jacob do Bandolim ao pai falecido, mas agora com a letra modificada de “bandolim” para “camarim”, já que está sendo reciclada para um ator. É sentimental? É. Mas só corações de pedra não se comoverão com Paulinho e Fernanda em seguida.
Se muitos problemas de uma empreitada em família foram evitados com inteligência e sensibilidade na edição, alguma coisa menos satisfatória também poderia prejudicar o filme caso insistissem em performances mais “empostadas” do ator como em “Cântico Negro”, poema “maldito” do lusitano José Régio que ficou para sempre associado à gravação insuperável do também português João Villaret. Nem é o melhor de Paulo Gracindo - que por sua vez foi insuperável em personagens populares como os bicheiros de A Falecida e de Bandeira Dois, o “coronel” de Gabriela, o político interiorano de O Bem-Amado, ou quando foi novamente parceiro de Fernanda Montenegro no cinema em Tudo Bem (de Arnaldo Jabor, 1978) - ou ainda quando fez outro personagem bem idoso, o quatrocentão paulista de Ossos do Barão na TV.
Sobre esta interpretação Paulo José comenta que houve críticas iniciais no sentido de que Paulo Gracindo estaria “sobreatuando”, termo que muitas vezes também é utilizado em inglês (overacting) com conotação pejorativa. Mas também já vi o termo traduzido como “super-interpretando”, o que pode trazer uma ambigüidade para o que se quer dizer. Afinal, não é qualquer ator que pode entrar na arriscada clave do overacting, que, de fato, é muito usada por canastrões pretensiosos sem noção de ridículo. Mas há atores que ficaram famosos por suas “super-interpretações” magníficas como Bette Davis no cinema - para ficarmos em um exemplo internacional. Paulo Gacindo podia “sobreatuar”, sim, mas a maioria dos registros, da memória do documentário são de super-interpretações irretocáveis que este filme ajuda a relembrar.
# PAULO GRACINDO – O BEM AMADO
Brasil, 2007
Direção e Roteiro: GRACINDO JR.
Fotografia: LULA ARAÚJO
Edição: PEDRO GRACINDO
Elenco: PAULO GRACINDO, FERNANDA MONTENEGRO, PAULINHO DA VIOLA, BIBI FERREIRA, LIMA DUARTE, EVA WILMA.
Duração: 80 minutos
Site oficial: http://www.paulogracindo.com.br/