“Eu não sou criança”, brada a jovem Filipa para seu pai em um momento-chave de À Deriva, terceiro longa de Heitor Dhalia. O que ela afirma em palavras é transmitido através de seu olhar distanciado ao observar silenciosamente a ruína do casamento de seus pais, até enxergar realmente que seu herói (a figura paterna) é na verdade um ser humano que acerta e erra como todos. Sendo assim, o filme parte da condição acomodada de relações familiares estagnadas para um sentido de descoberta em uma clássica apropriação da narrativa do rito de passagem.
Diferente de seus dois projetos anteriores (Nina e O Cheiro do Ralo), À Deriva apresenta uma preocupação de Dhalia com a dramaturgia como um eixo essencial para que a obra tenha força dramática e funcione independente da estética escolhida. Porque é exatamente nas questões formais que o filme evidencia as suas principais deficiências. Na tentativa de reunir o maior número de colaboradores renomados ao projeto, o diretor se coloca em uma posição delicada, pois deve reger todos esses elementos e egos para que contribuam com seu projeto, e não que realcem qualidades individuais. E o que se tem em À Deriva é uma junção de assinaturas que atrapalham no resultado do todo: Antonio Pinto fez uma trilha sonora que está em desencontro com a essência minimalista da personagem e que tenta aumentar e emoldurar um drama acima do encenado; já o estilista Alexandre Herchcovitch não trabalha na chave da contenção em termos de figurino no retrato dos personagens periféricos ao núcleo familiar, em destaque, para o exagero de tons e composição da personagem de Camilla Belle; e o diretor de fotografia Ricardo Della Rosa parece em constante busca de uma marca a cada cena ao navegar pela irregularidade de planos despojados à procura de sensações que não estão impressas ou ressaltar a granulação e as cores das locações praianas. É em meio a esses fatores que, mesmo assim, Dhalia consegue construir uma narrativa de interesse ao se voltar para a dramaturgia e ao desenvolvimento bem definido em atos de sua história.
A mise-en-scène de À Deriva faz a opção de colocar o rosto expressivo de Filipa para conduzir as emoções da história, mesmo com uma certa frieza e distanciamento característico de uma parcela do cinema de arte contemporâneo. É uma medida clara e funcional, sobretudo, pela intensidade na troca de olhares e na expressividade de rostos. Mas que acaba por ser traída quando se expõe motivações e estados psicológicos de maneira direta, como o anúncio do tema do livro do pai da jovem que revela a trama inteira em uma simples conversa. Ou seja, o filme ganha nas entrelinhas, no silêncio, mas perde quando precisa evidenciar isso de alguma forma. E é nesse sentido que À Deriva se distancia de O Pântano, de Lucrecia Martel, que radiografa a falência de uma família argentina.
O terceiro ato do filme busca na sua forma e conteúdo a atmosfera da tensão, enquanto o que realmente interessa é a relação entre pai e filha, que se torna real na tela devido aos trabalhos sinceros dos dois intérpretes, Vincent Cassel e Laura Neiva. A tragédia que se anuncia ou se oculta é irrelevante em termos cinematográficos - como o carro que está capotado na estrada ou a arma que surge como ponto de fuga -, pois o que está em jogo na narrativa de À Deriva é a confiança em alguém nos momentos difíceis e nos de lazer, como uma mão a lhe apoiar nas águas do mar. Ao abandonar o fundo moral de seus personagens principais anteriores e um apego obsessivo à estética, o cineasta Heitor Dhalia aponta um novo caminho para a sua carreira: respeito à dramaturgia e preocupação com a encenação. Em À Deriva surgem esses traços, esboços de um trabalho futuro.
# À DERIVA
Brasil, 2009.
Direção e Roteiro: HEITOR DHALIA
Produção: ANDREA BARATA RIBEIRO e BEL BERLINCK
Fotografia: RICARDO DELLA ROSA
Montagem: GUSTAVO GIANI
Elenco: VINCENT CASSEL, DÉBORA BLOCH, CAMILLA BELLE, LAURA NEIVA e CAUÃ REYMOND
Duração: 97 minutos
Site Oficial: http://www.aderivafilme.com.br/