Os Irmãos Coen sempre expõem em seus filmes a tolice humana que pode chegar à estupidez e destrutividade. Às vezes, a perversidade é a tônica dominante (Onde os Fracos não têm Vez). Outras vezes, a tolice prevalece (Arizona, Nunca mais), mas pode ter consequências e desdobramentos não necessariamente menos destrutivos (Queime depois de ler).
O traço comum nos filmes dos Coen é a ironia com que retratam as pequenas (e grandes) misérias humanas, tingindo o humor negro das situações com sarcasmo - mas sem moralismo, desenvolvendo as narrativas com certo grau de distanciamento que se torna, paradoxalmente, quase apiedado dos tolos e fúteis (como na obra-prima O Homem que não estava lá). E deixam no espectador uma constatação impotente da existência do mal em estado bruto.
Se para repetir o tema da estupidez e do mal (que encontrou sua melhor forma em Fargo) já chegaram à caricatura de Onde os fracos não tem Vez, agora, em Um Homem Sério, eles vão além da tolice humana para questionar a tolice de um deus criador e as circunstâncias que o supostamente onisciente e onipotente deus colocam no caminho de cada um. Ou a tolice estaria na crença em um deus como o do “Livro de Jó", inspiração óbvia para o enredo deste filme?
Personagem central daquele é considerado um dos “livros de sapiência” da Bíblia, “Jó” é um homem justo cuja vida é transformada em campo de batalha para uma disputa (aposta?) entre o “bom” (?) Deus e seu antagonista, o Diabo: para testar a lealdade de Jó ao “bom Deus”, este permite que o Diabo o faça sofrer de todas as desgraças possíveis (seus filhos morrem, ele adoece, perde seus bens materiais, etc)...mas permanece fiel a Deus e por isso será ressarcido (?) de suas perdas com novos filhos, saúde e bens.
Guardadas as diferenças de tempo e lugar, Larry Gopnik (vivido exemplarmente por Michael Stuhlbarg) também é um homem correto que vê seu pequeno mundo desabar a cada dia, com ameaças ao seu casamento, à sua saúde, à sua integridade profissional e assim por diante. As consultas aos advogados de pouco adiantam e as orientações dos rabinos não esclarecem em nada o que poderiam ser suas questões existenciais: por que tudo isso está acontecendo com ele?
O filme começa com um prólogo inventado pelos Irmãos Coen à moda de uma fábula íidiche onde, inadvertidamente, um casal permite que um “dibbuk” (morto-vivo, alma penada) entre em sua casa. Algumas pessoas estão interpretando esta introdução - que a rigor é desconectada do restante do enredo, exceto por se passar na mesma cultura judaica de Larry – como se se tratasse de antepassados do personagem central, tendo ele herdado uma maldição a partir deste episódio. Mas se levarmos em conta a desconexão das “explicações” rabínicas para as angústias de Larry, o prólogo fica como mais uma história sem sentido, sem ter nem “som e fúria”, mas “significando nada” – tal como Macbeth define a vida na tragédia que leva seu nome.
O filme propõe que nada tem "explicação", seja a entrada de um dibbuk em sua casa, seja o que acontece com o Larry - e assim, em vez de buscarmos significados para os fatos da vida do personagem e para cenas como a do prólogo, é mais fácil perceber outras alusões à Bíblia, como na cena escolhida para o cartaz do filme que mostra Larry em cima do telhado de sua casa. Se ele subiu lá para consertar a antena de TV (o filme se passa em uma época imprecisa entre os anos 1960 e ’70), o que ele vê no terreno de uma casa vizinha é uma mulher nua tomando banho de sol. Qualquer semelhança com a história de como o Rei David ficou fascinado com Betsabah que se banhava em um terraço próximo ao palácio real não deve ser mera coincidência.
Da mesma forma, no “Livro de Jó”, Deus acaba por falar a Jó (sem explicar os sofrimentos pelos quais o homem passou) de dentro de uma tempestade - e em uma das cenas capitais do filme vemos um tornado se aproximando ...sem que Deus nem ao menos se manifeste. Muitas outras citações ficam ao encargo das plateias, sendo que os menos familiarizados com o Judaísmo talvez possam apreciar menos o filme, tanto com referência a estas alusões como no uso de termos em hebraico e em iídiche.
A ausência de significado para as intempéries na vida de Larry parece também se expressar em uma série de eventos anacrônicos do roteiro. É difícil imaginar que os Coen tenham sido apenas descuidados em mencionar um disco (“Abraxas” – aliás um dos termos que pode se referir ao Deus criador) lançado em 1970 quando uma folhinha exibe o ano de 1967. É de se supor que o filme se passe em um período sem definição exata de tempo, apenas de lugar: a suburbia norteamericana da época em que os Coen tinham em torno de seus 13 anos, idade de fazer Bar Mitzvah (Joel é de 1954 e Ethan de 1957; nada mais justo que o filme se passe 13 anos depois de cada nascimento, em 1967 e em 1970. Eles declararam que a ideia para o roteiro começou com o Bar Mitzvah do filho do personagem central...)
# UM HOMEM SÉRIO (A SERIOUS MAN)
EUA/Inglaterra/França, 2009
Direção, Roteiro e Edição: JOEL e ETHAN COEN
Fotografia: ROGER DEAKINS
Direção de Arte: DEBORAH JENSEN
Música: CARTER BURWELL
Elenco: MICHAEL STUHLBARG, RICHARD KING, FRED MELAMED, SARI LENNICK, AARON WOLFF
Duração: 106 minutos
Site oficial: http://filminfocus.com/focusfeatures/film/a_serious_man/