Muitas antigas salas de cinema foram transformadas em “igrejas” pelo Brasil afora; e agora, talvez como um processo análogo, vários filmes produzidos no Brasil parecem seguir uma nova onda ligada à religiosidade popular. Já tivemos o inesperado sucesso de público de um filme que, segundo os que o assistiram, seria abaixo da crítica, enfocando o “Doutor Bezerra de Menezes” (conforme entendemos, o espírito curandeiro de um médico há muito falecido, mas que continua exercendo a medicina de alguma forma através de “médiuns” que promoveriam tratamento e curas tidas como miraculosas entre os fiéis).
Agora, com a griffe Globo e com o auxílio de diversos atores de primeira linha das novelas, temos a vida do famoso “médium” Chico Xavier dirigida pelo mesmo Daniel Filho que em 1975 ensaiou sua primeira direção para cinema com O Casal, recriação de um “especial” televisivo – e que em ’83 assinou O Cangaceiro Trapalhão (1983), um dos vários filmes-veículo de Renato Aragão ou de seu grupo Os Trapalhões.
Quase 20 anos depois Daniel transportou para as telas o sucesso teatral A Partilha (2001) que chegava a ser constrangedor como cinema, tal sua servidão ao esquema de “teatro filmado” - mas ainda por cima com deficiências técnicas gritantes. Essas vêm sendo superadas em outras tentativas, nas quais se destaca o enorme sucesso de bilheteria Se eu fosse Você (2006) – cópia anêmica de um clichê usado e abusado em vários filmes americanos dos anos 1970/80 que pretendiam fazer graça com a “troca de corpos” - com direito a mais do mesmo em uma continuação de 2009 que se transformou na maior renda da “retomada” do cinema brasileiro pós-Collor, posto que parece ameaçado por este Chico Xavier.
Daniel vem tentando perseguir o status de artesão em obras de rotina cinematográfica e parte da imprensa parece estar reconhecendo essas supostas qualidades artesanais, mas seus filmes sempre revelam um aprisionamento nas origens televisivas do diretor. Com mais competência na produção teve melhor acolhida crítica em outro “teatro filmado” (Tempos de Paz) com aquele recurso inútil de inventar cenas “externas” – como se isso transformasse o filme em “Cinema” - cuja linguagem continua quase ausente no novo filme de Daniel.
Para caracterizar o filme pode-se recorrer a uma das cenas que recriam uma entrevista do médium em um programa – digamos - precursor do “Roda Viva”, só que ao vivo e com presença de um auditório mais simpático ao entrevistado do que muitos dos entrevistadores. É assim que funciona Chico Xavier, dirigido a uma platéia de antemão sintonizada com o personagem, sua religiosidade, seus feitos.
A caracterização dos atores que o encarnam em três fases da vida é similar à de antigos filmes hollywoodianos ao retratar vidas de santos da Igreja Católica que inicialmente não foram bem recebidos pelos representantes da própria Igreja - que, posteriormente, reconheceria tais santidades. Como mostram aqueles sobre Bernadette em Lourdes, na França, ou sobre as crianças em Fátima, Portugal, que convenciam mais rapidamente o povo receptivo à ocorrência de milagres e feitos sobrenaturais do que padres e bispos temerosos de que as aparições relatadas pudessem ser artimanhas diabólicas em pele de cordeiro.
Do mesmo modo, Daniel Filho e seus filmes parecem convencer facilmente o público: desta vez, aquela enorme parcela interessada em milagres, mais do que em narrativas cinematográficas; ou em busca de saídas mágicas, mais do que em reflexões sobre a realidade sócio-psicológica-existencial.
Importa mais às platéias reconhecer as atrizes de novelas em papéis de acordo com a imagem pública que se tem delas (ou com características de personagens que interpretaram com maior notoriedade). Nem faz mal que o filme não mantenha o ritmo e se arraste em várias passagens de seus longos 125 minutos; nem que as cenas com a presença do espírito “Emmanuel” sejam constrangedoras para os incréus, à diferença do velho artesanato hollywoodiano que podia seduzir mesmo os descrentes (podiam agradar como ficção). A propósito, William Wyler (que Daniel Filho na época de seu Primo Basílio de 2007 – quase como uma blasfêmia - declarou se inspirar em seus filmes) gostava de dizer que, embora judeu, manteve em Ben-Hur a inspiração católica do romance original.
Ao público de Chico Xavier pode agradar o roteiro recheado de clichês tanto quanto a doçura excessiva dos atores que interpretam o médium como mais um “santinho” que teria merecido ser canonizado em vida pelo povo, indiferente - em parte - às religiões oficiais e seus processos canônicos, povo este capaz de promover um sincretismo à brasileira que o filme, de certa forma, também reproduz na amizade do médium espírita com um padre católico. Pode ser prático agradar a dois senhores.
Como pequeno diferencial, nos créditos finais, um tape do próprio Chico revela humor e auto-gozação bem diferentes do tom mais cerimonioso dessa empreitada - que já se sabe, terá sucedâneos em mais quatro ou cinco filmes em realização com temas ligados ao espiritismo.
Ou seja, depois de “igrejas” evangélicas terem ocupado tantas salas de cinema no Brasil, agora são os filmes brasileiros que serão ocupados pelo espíritos da religiosidade popular. Bilheteria certa em ambos os casos.
# CHICO XAVIER – O FILME
Brasil, 2010
Direção: Daniel Filho
Roteiro: Marcos Bernstein, baseado no livro de Marcel Souto Maior
Fotografia: Nonato Estrela
Edição: Diana Vasconcellos
Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto
Música: Egberto Gismonti
Elenco: Nélson Xavier , Angelo Antônio , Tony Ramos , Christiane Torloni, Matheus Costa.
Duração: 125 minutos
Site oficial:http://www.chicoxavierofilme.com.br