Consta que a expressão “mãe coruja” seria originada de uma fábula na qual um gavião se muda para a floresta e passa a inspirar temores à comadre coruja que vai visitá-lo; argumenta que são primos, ambos aves de rapina, mas, ansiosa com a fama que tem o gavião de comer filhotes de outras aves, pede que poupe os dela. “Mas como vou saber quem são os seus filhotes quando a senhora não estiver no ninho, comadre?”, pondera o gavião, ao que a “mãe coruja” responde com segurança: “Ah, será muito fácil, compadre, pois os meus são os mais belos filhotes de ave de toda a floresta”.
O final trágico é previsível: quando a coruja retorna ao ninho de onde saíra para catar alimento para os filhos, não os encontra; e vai tomar satisfações com o gavião: “Compadre gavião! O senhor comeu meus filhotes?!” – “Nunca”, afirmou o outro, “Eu procurei bem e comi os mais feios de todos os ninhos por onde passei.”
É difícil não lembrar esta narrativa quando se entra em contato com a personagem referida no título de Mother. (E porque será que os filmes coreanos ganham nomes em inglês no Brasil, tal como anteriormente Time – O Amor contra a passagem do tempo e agora este Madeo - título original – ainda por cima, seguidos de subtítulos supostamente – apenas supostamente - “explicativos”?)
[Mas cabe destacar que (conforme descobri depois) devido às diferenças fonéticas entre o Inglês e o Coreano, tanto “Mother" como "Murder" são pronunciados da mesma forma quando escritos em caracteres coreanos. Assim, o título do filme, “Madeo”, acaba sendo um jogo/brincadeira/trocadilho pela similaridade que aproxima “Mother” e “Murder”]
Voltando aos filhotes feiosos da Comadre Coruja na fábula, cabe ressaltar que o personagem do jovem Do-Joon não é fisicamente feioso como os filhotes da coruja: um amigo chega a mencionar o “rostinho bonito” do rapaz que, entretanto, volta e meia é xingado de “idiota”, ou mesmo chamado de “retardado” - sendo que neste segundo caso, ele reage violentamente.
O fato é que Do-Joon é intelectualmente muito limitado, raramente parece poder distinguir o que seria essencial e o que é acessório; e sua atenção dispersa faz com que não se lembre de episódios mais ou menos importantes, ainda que recentes, podendo evocá-los por outras associações em outros momentos posteriores. Em resumo, não há o menor senso de oportunidade no que diz ou em como se comporta. Quando está sendo inquirido sobre onde estava e o que fazia na noite em que um assassinato foi cometido, ele subitamente se lembra de algo, só que relativo à manhã daquele dia quando se envolveu em briga em um clube de golfe. Para piorar, uma bola de golfe com seu nome foi encontrada ao lado do cadáver e ele passa a ser um “suspeito fácil”.
É contra isso que sua mãe vai se rebelar e tentar desvendar por conta própria o que teria de fato acontecido, Neste desenvolvimento o filme se aproxima do drama de mistério, do gênero policial, e também pode lembrar a tragédia clássica de Édipo, o rei que queria descobrir a verdade sobre o assassinato do seu antecessor a qualquer preço, incorrendo na hybris (desmesura) que sempre é punida pelos deuses.
Como em toda trama que esconde um mistério, há pistas falsas e é uma pena que por vezes o roteiro tenha “trapaceado” um pouco mais do que o necessário ao induzir (especialmente por elipses e edição) o espectador a equívocos desnecessários. Isso, no entanto, não retira do filme suas principais qualidades que vão além do gênero de mistério ao qual o roteiro adere. Um de seus trunfos maiores é a narrativa visual com belos movimentos de câmera e acachapantes planos gerais, tal como Hitchcock usava frequentemente, minimizando o personagem em meio à paisagem; muitas vezes a mãe surge mínima dentro do enquadramento amplo da natureza.
Outro destaque está no desempenho admirável de Kim Hye-ja como a mãe-coruja do ano. O resto do elenco também é exemplar, sendo que Won Bin dá vida ao rapaz com inteligência limítrofe sem derrapar na caricatura.
Aliás, a situação “limítrofe” perpassa todo o filme, sendo que a própria mãe vai revelar outras facetas mais complexas, muito além do estereótipo mais evidente do “amor materno incondicional”.
A atenção da plateia é mantida durante todo o tempo de projeção, não só pelas reviravoltas do enredo como pela revelação de aspectos sórdidos em inúmeros detalhes na conduta dos personagens: sejam secundários, episódicos, ou não. Vai ser difícil para o espectador encontrar o “meridiano” que a personagem da mãe promete em suas práticas (ilegais) de acupuntura: aquele que, segundo ela, “desfaz os nós do coração” e, assim, faria esquecer as experiências dolorosas. No caso, esquecer este filme será quase impossível.
# MOTHER – A BUSCA PELA VERDADE (MADEO)
Coréia do Sul, 2009
Direção: BONG JOON-HO
Roteiro: Park Eun-kyo , Bom Joon-ho g, Park Wun-kyo
Fotografia: Hong Kyung-Pyo
Edição: Moon Sae-kyoung
Música: Byeong-woo Lee
Elenco: Kim Hye-ja , Won Bin , Jin Ku, Yoon Jae-Moon
Duração: 128 minutos
Site oficial: http://www.diaphana.fr/fiche.php?pkfilms=181