Os dois livros de Lewis Carroll que tratam da personagem Alice já serviram de base a quase 40 filmes (incluindo produções feitas para a TV) desde 1903. Portanto, poderia ter sido bem criativa a tentativa de apropriação inovadora da personagem em seus episódicos encontros com figuras tão bizarras quanto quase sempre interessantemente ensandecidas e significativas. Não se trata de reclamar de infidelidade aos caminhos originais percorridos por Alice - seja ...no País das Maravilhas, seja ...Através do Espelho: a primeira questão sobre a versão de Tim Burton para a criação de Lewis Carroll é que o roteiro de Linda Woolverton (das animações Disney Rei Leão, Mulan e A Bela e a Fera), ao reinventar a roda consegue fazê-la quadrada.
Ou seja, a base é mais parecida com um padrão de filme Disney do que com que se espera de Tim Burton. Nada contra, caso se conseguisse um dos bons resultados Disney (entre os quais poderíamos incluir algumas soluções da adaptação em animação de 1951 para Alice) - e podemos até mesmo detectar alguns traços mais suaves de desenhos animados “Disney” mesclados ao "estilo" “gótico” de Edward Mãos de Tesoura, ainda um dos melhores filmes de Burton, vinte anos depois de lançado.
Se as preferências de Burton se distanciam enormemente da inclinação mais edulcorada dos produtos Disney, o que aconteceu com este seu Alice in Wonderland é que o que bate na tela lembra mais uma espécie de “Tim Burton in Disneyland”. Com o agravante de lembrar a fórmula de outros blockbusters com suas cenas de batalha perto do final. Para isso, o roteiro convoca o monstro que aparece em um poema de Alice através do Espelho, o Jabberwocky (brilhantemente vertido para o português como “Jaguadarte” por Augusto de Campos) que originalmente é composto de uma série de palavras-nonsense. O animal serve ao formato de ação e à premissa de que as plateias precisam de cenas agitadas com duelos e guerras no suposto clímax dos filmes-pipoca. Qualquer semelhança com a elefantisíaca batalha final de Avatar não é mera coincidência. Além de vir em seguida a um enorme trecho do filme que soa repetitivo e sem ritmo, fica claro que, com esta concepção, será difícil não lembrarmos que o original é muito melhor, aliás, infinitamente melhor. E independente da relaçao com a fonte, o filme não decola.
Poderia ter havido inspiração mais pertinente ao enfocar Alice de modo menos infantil – e isto era o que se esperava de Tim Burton: um filme menos ingênuo do que este acabou parecendo. Por um lado, sua Alice mais adolescente - ou mesmo já bem adiantada como teen - surge no corpo de Mia Wasikowska, cuja presença acabou sendo um dos poucos trunfos do filme, tal como a participação de uma Helena Bonham Carter metamorfoseada em animação digital como Rainha ensandecida.
Desde os livros, Alice não pára de crescer e diminuir de tamanho, o que sugere todas as angústias de mudanças corporais que surgem na puberdade, mas este aspecto só é levemente aventado no enredo que coloca a mocinha na rota de um casamento arranjado (e indesejado). Mas esta Alice independente e com inventivas idéias, digamos “capitalistas”, que rejeita o compromisso de casamento (pré-feminista, claro), em favor de um empreendimento além-mar que honra a memória (edípica?) de seu pai, diz bem o que acabou sendo o nonsense involuntário desta (in)versão/involução sobre o original de Carroll.
Nem mesmo o tratamento visual que costuma seduzir os fãs entusiastas de Burton encontra seus melhores momentos: há cenários de gosto duvidoso (na direção de arte, a equipe traz vários nomes de Avatar) e a transposição de filmagem em 2-D para 3-D nem sempre se mostra plenamente satisfatória nas dimensões ou na nitidez figura-fundo de alguns trechos.
A participação enormemente aumentada do “Chapeleiro Louco” neste roteiro parece atender à presença estrelar do ator-assinatura de Burton, Johnny Depp, aqui lembrando bastante o seu “Willy Wonka” da versão de Burton para A Fantástica Fábrica de Chocolate em 2005. O ator de certa forma se repete sem encontrar uma chave satisfatória para o seu ‘Chapeleiro’ que é – e não é mais – o que Carroll - ou mesmo os roteiristas-desenhistas da animação de 1951 – conceberam e acaba sendo qualquer coisa meio indefinida além de um visual bizarro.
A dimensão exagerada do Chapeleiro neste filme pode ser medida pelos créditos que pagam tributo ao astro ao anunciar Johnny Depp em ‘Alice no País das Maravilhas’. Nem mesmo a atual mulher do diretor, Helena Bonham Carter, foi tão cortejada nas chamadas em sua recriação furiosa da “Rainha de Copas” (do “País das Maravilhas” mesclada à “Rainha Vermelha” de “Através do Espelho”). Já a “Rainha Branca” de Anne Hathaway parece mais uma “noiva-cadáver” fantasmagórica, apagada em relação à rival que constrói alguns dos momentos mais satisfatórios do filme – vale repetir, ao lado do carisma que demonstra ter Mia Wasikowska, relativamente conhecida por aqui por sua excelente composição como a paciente adolescente do mal resolvido psicanalista na série televisiva In Treatment.
# ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (ALICE IN WONDERLAND.)
EUA, 2010
Direção: TIM BURTON
Roteiro: LINDA WOOLVERTON
Fotografia: DARIUS WOLSKI
Edição: CHRIS LEBENZON
Música: DANNY ELFMAN
Direção de Arte: Tim Browning, Todd Cherniawsky, Andrew L. Jones, Mike Stassi e Christina Ann Wilson
Efeitos Especiais: Sony Pictures Imageworks / Svengali Visual Effects / Plowman Craven & Associates / CafeFX / Matte World Digital
Elenco: MIA WASIKOWSKA, JOHNNY DEPP, HELENA BONHAM CARTER, ANNE HATHAWAY, CRISPIN GLOVER
Duração: 108 minutos
Site oficial: http://disney.go.com/disneypictures/aliceinwonderland/