Algumas situações do argumento de O Escritor Fantasma casam bem com circunstâncias análogas de outros filmes que Roman Polanski já assinou. O personagem interpretado por Ewan McGregor (cujo nome jamais é mencionado – aliás, como convém a um “ghost-writer”) é uma espécie de estranho em ninho alheio (ninho de cobras); tal como a jovem grávida que Mia Farrow viveu em O Bebê de Rosemary, de 1968; ou ainda, o patético estrangeiro em Paris que Polanski mesmo interpretou em O Inquilino, de 1976 (este também ocupava o lugar de alguém que morrera anteriormente e em circunstâncias pouco esclarecidas).
O homem mais jovem de A Faca na Água (1962) também estava em um meio que não era aquele que dominava; e sua arma de defesa (ou ataque) era de pouca serventia neste outro ambiente. Aqui, a escrita do escritor-fantasma é de utilidade ambígua, podendo servir para ataque, defesa ou... para expo-lo a riscos.
O décimo-oitavo e mais recente longa de Polanski foi premiado no Festival de Berlin deste ano como “melhor direção” - talvez como desagravo pela prisão domiciliar em que se encontra o cineasta de 76 anos, ameaçado de deportação para os Estados Unidos com base em antiga condenação por estupro presumido (relações sexuais com menor de idade - de 13 anos - em 1978). O personagem vivido por Pierce Brosnam neste filme, ao contrário, se vê ameaçado de não poder deixar os EUA devido à acusação de crimes de guerra, sendo ele um ex-Primeiro Ministro britânico com perfil que lembra intencionalmente Tony Blair e seu apoio à Guerra do Iraque, capitaneada pelo Bush II. O autor do livro original e co-roteirista é um repórter que teria apoiado Tony Blair até seu envolvimento com a guerra e escreveu fazendo alusões diretas a Blair, à empresa Halliburton (no filme "Hatherton"), etc. (OBS.: Vale a pena pesquisar sobre a real Halliburton).
Quando dissemos que o prêmio em Berlim talvez tenha sido ligado ao imbroglio em que Polanski está envolvido não foi porque o seu trabalho mais recente seria ruim: quem dera que a maioria dos filmes de gênero com ambições populares/comerciais fossem dirigidos com tal competência artesanal ! Pois é essa a qualidade da orquestração cinematográfica sobre o roteiro cujo desenvolvimento na tela tem alguns lances pouco convincentes, cabendo aos bons desempenhos dos atores, à direção e à montagem tornar mais palatáveis os pontos inverossímeis. O elenco se permite o luxo de ter Tom Wilkinson em praticamente uma única cena, assim como o veteraníssimo Eli Wallach - que em 2010 completará 95 anos! Mas é do trio central que o filme depende mais: Ewan McGregor sustenta bem os (geralmente ótimos) diálogos (geralmente irônicos) ao lado de uma Olivia Williams ótima e de um Pierce Brosnan bem escalado para o papel de político que teve ascensão meteórica porque lembrava menos um político do que um sujeito de boa estampa (e além de Tony Blair, para nós ele pode até lembrar alguma coisa do midiático Collor de triste memória).
Já é mais do que hora de reconhecer que a carreira de Polanski é bastante irregular e foi superestimada pelo público cinéfilo que tem seu nome como referência autoral, o que nunca foi sua maior pretensão, dizendo-se não mais do que um metteur-en-scéne sem estilo - e era pertinente temer que ele nem teria chances de recuperação após os lamentáveis Lua de Fel, de 1992, e O Último Portal de ‘99. Mas o bom artesão - capaz de posicionar muito bem a câmera para enquadrar com elegância e filmar como quem já antecipa a montagem ágil - se faz presente mais uma vez, aproveitando bem a direção de arte com interiores espetaculares de uma casa com amplas vidraças para o exterior. Consta que houve uso de tela verde para posteriormente serem colocadas as paisagens com pouca gente, um pouco como em Armadilha do Destino, de 1966; na verdade, as locações “americanas” foram feitas em uma ilha alemã pela questão do diretor não poder pisar no EUA, onde iria (irá) direto para a cadeia.
Outro equívoco é o de considerar Polanski e alguns de seus filmes como "hitchcockianos": aqui, seu suspense é baseado em ocultação de fatos que vão sendo revelados, quando o velho Hitch evitava o "whodunit?" ("quem cometeu o crime?"). Mas a música de Alexandre Desplat, em alguns momentos parece querer lembrar trechos de Bernard Hermann em obras de Hitchcock e, seja como for, a atenção do espectador se mantém presa durante os 128 minutos de duração. Coisa de cineasta "do ramo" que quando os roteiros têm a qualidade de Chinatown (de Robert Towne) e "A Faca na Água" (com Jerzy Skolimowski) dirige obras excepcionais que fizeram seu nome.
#O ESCRITOR FANTASMA (THE GHOST WRITER)
França/Alemanha;Reino Unido, 2010
Direção: ROMAN POLANSKI
Roteiro: ROMAN POLANSKI e ROBERT HARRIS, baseado em livro de R. Harris
Fotografia: PAWEL EDELMAN
Edição: HERVÉ DE LUZE
Direção de Arte: CORNELIA OTT, DAVID SEHEUNEMANN, STEVE SUMMERSGILL
Música: ALEXANDRE DESPLAT
Produção ALIAN SARDE e ROBERT BENMUSSA
Elenco: EWAN McGREGOR, PIERCE BROSNAN, OLIVIA WILLIAMS, KIM CATRALL, TOM WILKINSON, ELI WALLACH, TIMOTHY HUTTON, JAMES BELUSHI;
Duração: 128 minutos
Site oficial: http://www.theghost-romanpolanski.com