A estréia de Jorge Furtado no longa-metragem é um momento ansiosamente aguardado do cinema brasileiro contemporâneo. Mas ele não se intimidou com tal expectativa. Não quis fazer um filme “à altura” do panteão em que se encontra como um dos maiores talentos da escritura e da direção audiovisuais surgidos no Brasil dos anos 1980. O autor de Ilha das Flores, por muitos reverenciado como o melhor curta já feito no país, chega ao longa com uma comédia romântica leve e despretensiosa, algo assim como um churro com creme para se comer à beira da praia numa tarde meio nublada. E no entanto, Houve uma Vez Dois Verões está perfeitamente à altura do cinema inteligente e comunicativo de Jorge Furtado.
Está ali, por exemplo, o acionamento do aparato ficcional para falar de “verdades” que todo mundo sabe, mas que parecem renascer com frescor na forma de dramaturgia. Quase todo filme de Furtado procura desenvolver uma espécie de raciocínio lógico, que conduz a uma afirmação sobre o mundo. Os pobres vivem pior que os porcos (Ilha das Flores). Qualquer pessoa pode inspirar um documentário (Esta Não É a sua Vida). A cidade afasta as pessoas umas das outras (Ângelo Anda Sumido). O passado é um jogo que já terminou (Barbosa). O acaso é mais forte que o destino (Estrada). Em Houve uma Vez Dois Verões, Furtado lança mão de uma trama simples, sobre iniciação sexual seguida de paixão, para dizer que o amor tem armas suficientes para vencer a cafajestice.
Em sua persistente batalha pelo coração de Roza (Ana Maria Mainieri), Chico (André Arteche) erige-se em personagem quase épico. Nada parece detê-lo – o engano, a humilhação, a rejeição ou o ridículo. Não seria tão impróprio interpretar o filme como um apanágio dos bons propósitos e da ética contra a vigarice e a mentira institucionalizada que campeiam menos nas relações interpessoais que na própria macroestrutura do país. Mas isso seria sobrecarregá-lo em demasia. A referência direta a um fato real (a falsificação de pílulas anticoncepcionais), assim como a fidelidade à linguagem e à paisagem gaúchas, são apenas fios-terra com que o cineasta conecta sua ficção ao mundo histórico que todos partilhamos. Grau maior de simbiose entre invenção e realidade apresentavam Ilha das Flores, Esta Não É a sua Vida, Barbosa e A Matadeira, todos vistos como semidocumentários ou falsos documentários.
O recurso programático a episódios reais, patrimônio comum ao autor e seu público, tem sido apenas uma das estratégias de Furtado para absorver o espectador nas tramas do seu discurso. Ele pertence a uma geração que redescobriu a metalinguagem como ferramenta irônica para estabelecer níveis de cumplicidade com a platéia. Seus filmes costumam integrar pequenos ensaios sobre a natureza da narrativa e do espetáculo cinematográficos. O falso e o verdadeiro aparecem imbricados de maneira prodigiosa em Ilha das Flores, Barbosa e O Sanduíche, reiterando uma consciência crítica dos meios que vem dos anos 1960, mais especificamente de Jean-Luc Godard. Um filme é só um filme. Houve uma Vez Dois Verões tem tanto a ver com os jovens de Porto Alegre quanto com uma certa tradição do gênero cinematográfico, mais proximamente identificada com o nostálgico Houve uma Vez um Verão (Summer of 42) , de Robert Mulligan (1971).
Furtado busca aqui um duplo diálogo: de um lado, com os jovens de hoje, que querem casar e curtem Cássia Eller, Pato Fu e outros tantos cantores e bandas presentes na trilha musical; de outro, com o jovens de ontem, a geração do autor e do filme de Mulligan, que só queriam transar e ainda sentem os pêlos do braço arrepiarem aos acordes de My Pledge of Love, Without You e Nasci para Chorar. O realizador não quer simplesmente expressar suas inquietações, mas comunicá-las com eficiência. O longo e profícuo trabalho em televisão, certamente, solidificou em Furtado uma tendência a considerar a presença do espectador como parte integrante do seu processo de criação. Seus filmes são conversas, convites diretos a que o público o acompanhe no percurso das idéias. Instrumento precioso nessas viagens em grupo tem sido a narração em off, exercitada como ruminação pós-adolescente em Houve uma Vez Dois Verões. O fluxo mental de Chico não é expositivo como nos documentários, nem irônico e climático como nos filmes noir, mas antes veiculam o constante interesse de Jorge Furtado em extrair alguma lógica de fatos aparentemente desordenados e desconexos.
Juntar as pontas do acaso cotidiano é a maior diversão nos filmes do autor. Da mesma forma, juntar as pontas de vários elementos narrativos – o road movie, a comédia de equívocos, a metáfora do fliperama, o videoclipe etc – resulta numa linguagem rigorosamente moderna, integrada e espontânea, que a filmagem com equipamento de vídeo digital só ajudou a tornar possível.
# HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES
Brasil, 2002
Direção e Roteiro: JORGE FURTADO
Produção: NORA GOULART E LUCIANA TOMASI
Fotografia: ALEX SERNAMBI
Montagem: GIBA ASSIS BRASIL
Direção de Arte: FIAPO BARTH
Direção Musical: LÉO HENKIN
Elenco: ANDRÉ ARTECHE, ANA MARIA MAINIERI, PEDRO FURTADO, JÚLIA BARTH, VICTORIA MAZZINI, MARCELO AQUINO
Duração: 75 min.
site: www.casacinepoa.com.br/port/filmes/houve1vz.htm
Texto publicado originalmente no folder do evento “Encontro com o Cinema Brasileiro”, do Centro Cultural Banco do Brasil – SP (agosto/2002).