O título de Uma Noite em 67, documentário assinado por Ricardo Calil e Renato Terra, não mente: o filme parte apenas de uma noite, a quarta do intitulado “3º Festival da Música Popular Brasileira”, aquela que reuniu as 12 canções selecionadas nas semanas anteriores, noites das “eliminatórias”, cada uma com doze músicas (por coincidência um LP daqueles tempos?), sendo que, a cada programa semanal, quatro foram classificadas para a “final”.
Mas a partir do que aconteceu naquele festival, o filme também pretende abordar a irrupção do Tropicalismo musical, inaugurado por Caetano Veloso e Gilberto Gil através de Alegria, Alegria e Domingo no Parque - que eram, respectivamente, uma marchinha (o que Caetano assume em uma de suas falas, aliás, como “marchinha portuguesa... da Alfama” – sic) e uma capoeirada, às quais foram acrescentadas inabituais (na época) guitarras elétricas: o pomo da discórdia entre os cantores e compositores que se pretendiam da “autêntica” M.P.B., de um lado, e a “Jovem Guarda”, do outro.
Para quem é mais velho e ainda não sabia, algumas entrevistas deixam bem claro que a TV Record (aquela de antigamente) estava promovendo um “programa de televisão” com o elenco de astros da música popular que tinha sob contrato: dentre muitos e muitos outros, Elis Regina, Roberto Carlos e Elizete Cardoso - líderes dos respectivos “Fino da Bossa”, “Jovem Guarda” e “Bossaudade”. Desta vez os da “velha guarda” podem ter ficado de fora, mas aquela geração de gente incrivelmente talentosa com pouco mais de 20 anos de idade em 1967 foi toda convidada (ou convocada) para participar do Festival que - como outros - era patrocinado por uma das redes de televisão, um hábito anual que durou, no seu ápice, uns cinco anos (se tanto), no Rio e em São Paulo, não raramente mobilizando a opinião pública e a imprensa em torno da disputa, com um público empolgado que lotava (mesmo) o estádio do Maracanãzinho no Rio e os auditórios de SP.
O público que vaiava sem dó nem piedade as canções que não “batiam” imediatamente nos ouvidos são outro foco de interesse do filme que, além dos cinco mais bem classificados, se detém sobre o inusitado episódio em que o cantor-compositor Sérgio Ricardo, sem condições de apresentar sua canção na finalíssima, tal a intensidade das vaias, quebrou o violão e o arremessou sobre a platéia, o que ficou conhecido, conforme uma manchete sensacionalista de um jornal popular, como “violada no auditório”.
Para os saudosistas pode ser até mesmo comovente rever (e ouvir novamente) os jovens Chico Buarque, Edu Lobo, MPB4, Gil, Caetano e RC interpretando músicas que se tornaram “clássicos” da MPB tal como Roda Viva (em espetacular arranjo vocal do “Magro” do MPB4), Ponteio (que Edu cantou ao lado de Marília Medalha e de um conjunto de curta duração, o “Momento4uatro” que reunia José Rodrigues - depois Zé Rodrix -, Ricardo Villas, David Tygel, Maurício Maestro), ou Domingo no Parque (com Gil ao lado dos Mutantes: Rita Lee, Sergio e Arnaldo).
Do mesmo modo as entrevistas atuais, mais de 30 anos depois, podem ser bastante interessantes, especialmente com Caetano, bem articulado como de hábito (ao contrário de Gil, cujas falas do passado tinham uma objetividade bem contrastante com as reticências circunloquiais de hoje em dia) e com um Chico despojado, bem humorado e despretensioso. Roberto Carlos fala pouco (também como de hábito) mas também está bem humorado ao esclarecer que não foi uma opção sua (mas ele aceitou) cantar um samba (bem "paulista", aliás), tendo sido "escolhido" (contratualmente?) para defender "Maria, Carnaval e Cinzas".
Mas o filme se ressente de uma avaliação mais independente dos entrevistados. Os responsáveis pelo filme não se pronunciam sobre várias questões. Por exemplo: RC tentava ampliar seu público aceitando cantar samba(s)? (Não foi só um, mas 2 sambas que ele defendeu.) Os primeiros festivais serviam mesmo como uma vitrine eficiente para artistas que ainda não eram conhecidos? Como pode ser entendida - hoje em dia e na época - a paixão do público? Era ligada à excelência das composições? Ao carisma dos compositores-cantores? Ou/e a outros fatores psico-sócio-culturais do momento politico brasileiro? Se algumas dessas questões são tangenciadas por um ou outro entrevistado, os diretores optam por um "distanciamento" especulativo de excessiva neutralidade, caindo no surrado formato de “cabeças falantes” (os entrevistados falando com seus rostos em close) alternando-se com registros de época que, afinal, podem ser vistos e revistos facilmente pela internet, não é de hoje.
Entre os participantes “coadjuvantes” dos cantores-compositores, ninguém é ouvido, com exceção do MPB-4, mais do que um mero apoio vocal de Chico Buarque na época e seria interessante escutar os participantes sobreviventes do extinto “Momento4uatro” (todos fizeram carreira solo ou em outros grupos) que faziam coro para Edu e para a voz feminina da vitoriosa Ponteio, Marília Medalha (Edu a chamaria de novo para cantar Marta Saré com ele no festival de ’68, mas ela também não é ouvida na atualidade).
Centrado nos nomes estrelares, mesmo assim ninguém comenta que Roberto Carlos também defendeu um samba mais sofisticado que o “sambão-jóia” Maria, carnaval e Cinzas: de Francis Hime e Vinicius de Moraes, Anoiteceu nem foi classificada e nem Roberto a gravou - o que ficou por conta de Nara Leão e Milton Nascimento (e mais recentemente por uma nova sensação lírica, a soprano Measha Brueggergosman). A exclusão dentre as finalistas da (posteriormente) considerada "clássica", Eu e a Birsa, até pode ser compreendida pelo fato de ser uma canção de bossa nova em um período em que a bossa estava em baixa associada à volta dos cantores de dó de peito (como Elis), mas a obra-prima de Johnny Alf nem é mencionada no filme, prisioneiro da noite final da competição que projetou definitivamente Gil, Caetano, Mutantes e confirmou Edu e Chico como autores de sucesso. Roberto Carlos pode não ter se beneficiado muito, mas não perdeu nada ao dar uma voltinha em um território que não era mesmo sua praia.
Enquanto o 3º Festival foi um programa de TV que extrapolou seus limites, este documentário tem o formato de um interessante programa de TV, algo como uma reportagem informativa, sem nenhuma especulação/investigação própria a respeito do que foi aquela “noite em 67” ou seu significado além da revelação do recém-nascido Tropicalismo ou do registro do comportamento selvagem do público, cujas vaias devastadoras já haviam se manifestado um ano antes na rejeição a Saveiros, no Festival do Maracanãzinho.
Uma das coisas pouco claras para quem não viveu o momento é que, sendo o “terceiro” festival (paulista), somava expectativas advindas de outros anteriores. Numericamente houve mais do que 2 festivais antes deste, mas alguns eram outros “programas” de outras redes de TV, premiando Geraldo Vandré (“Porta Estandarte” em um ano e “Disparada” em outro) Edu Lobo (firmando Elis Regina na MPB, antes cantora de boleros e versões, agora consagrada com “Arrastão”), Chico Buarque (e “A Banda” com ele e Nara Leão) - em SP. Para não falar dos sucessos cariocas de "Travessia", que revelou MIlton Nascimento ou de "Carolina" do então onipresente Chico Buarque.
Os documentários nacionais sobre música brasileira talvez sejam aqueles que em média consigam um pouco mais de público (um nicho interessado em música e em seus intérpretes) do que os que abordam outros temas, mas - infelizmente - estão se tornando estereotipados e preguiçosos no formato talking heads e reutilização de antigas fitas de vídeo-tape das emissoras de TV, sem uma visão autoral dos entrevistadores e editores de antigas imagens que assinam a direção.
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil
Produção executiva: João Moreira Salles e Maurício Andrade Ramos
Consultoria: Zuza Homem de Mello
Direção de Fotografia: Jacques Cheuiche
Som: Valéria Ferro
Montagem: Jordana Berg
Mixagem: Denilson Campos
Produção: Beth Accioly
Coordenação de produção: Carolina Benevides
Coordenação de finalização: Bianca Costa
Pesquisa: Antônio Venâncio