Esqueçam a Caverna de Platão pop de Matrix e não pensem que este filme, por envolver sonhos dentro de sonhos, seria o equivalente de uma versão das idéias de Freud para consumo imediato com molho de blockbuster de ação.
Se o espectador deixar tais expectativas de lado talvez possa se divertir com os efeitos especiais e imagens de A Origem, mais uma incursão do diretor Christopher Nolan no mesmo tipo de narrativa de Amnésia (2000) e de O Grande Truque (2006). No filme mais antigo a história era desenrolada (ou enrolada?) indo do presente para o passado; e no outro ele inseria flash-backs dentro de flashbacks. Agora, em Inception (título original), mais do que sequências acronológicas (que também existem), temos a montagem paralela de episódios que se passam em diferentes cenários, quase todos oníricos, de acordo com a premissa de que é possível penetrar nos sonhos alheios, furtar ideias e – até mesmo – inserir idéias: este, o desafio do personagem principal vivido por Leonardo Di Caprio e sua equipe de experts, cada um em uma área.
Nos quinze minutos iniciais, o público pode ficar confuso ao acompanhar o que está acontecendo em mudanças súbitas de ambientes e nas atitudes dos personagens, mas logo surge o esclarecimento de que estávamos presenciando sonhos de uns e/ou de outros, principalmente sonhos sonhados dentro de outros sonhos mais – digamos – originais. Mas não se trata de nenhum Discreto Charme da Burguesia buñueliano, cuja narrativa, poderia (ou não) ser “remontada” como sendo uma série de fragmentos de sonhos em que um personagem estaria sonhando com outro que por sua vez sonhava algo que envolvia outro sonho (seu ou de outrem)... ad infinitum...
Se em Buñuel os sonhos - recorrentes em toda sua obra - atendiam aos princípios do surrealismo, não se reduzindo a explicações didáticas e fazendo jus à estranheza que experimentamos quando sonhamos (e ao que Freud propunha como via de acesso a níveis inconscientes da mente), em Christopher Nolan as “camadas” dos sonhos encenados estão mais ligados às premissas das chamadas neurociências dos dias de hoje, sendo decodificados como charadas que vão sendo resolvidas tim-tim-por-tim-tim, sem o desregramento da lógica formal que é inerente às mais complexas produções oníricas. O que surge como insólito é imagético, mas os enredos dos sonhos aqui são assépticos e lógicos, sendo encaixadinhos pelo roteiro sem deixar perplexidades em aberto como nos sonhos de fato.
Há imagens atraentes, por exemplo quando é desafiada a lei da gravidade: se alguém que está sedado e sonhando também está caindo de uma determinada altura, seu sonho pode apresentar essa sensação de um corpo no ar sem estar preso ao solo. Ou seja, tal como quando o despertador toca e podemos sonhar que um telefone está tocando e no sonho atendemos o telefonema, conversamos e... continuamos dormindo sem querer acordar. Os sonhos deste filme seguem quase que apenas essa influência direta do que está acontecendo fora do sono e que pode interferir na elaboração imediata do sonho, não tendo muito a ver com o mundo subjetivo do sonhador - exceto para o personagem de Di Caprio que carrega uma culpa trágica em sua história de vida - que não será mencionada aqui em consideração a quem ainda não viu o filme. O que podemos dizer é que há recurso a referências mitológicas como à lenda de Orfeu – além de menção explícita ao Lethes (um dos cinco rios do reino dos mortos na mesma mitologia grega) e a Ariadne, aquela do fio que ajudou Teseu a sair de um Labirinto.
Mas também não vale a pena o espectador curioso esperar algo mais além nas expectativas de recriação de mitos universais e atemporais: A Origem é totalmente contemporâneo em sua procura de fascinar a plateia com efeitos especiais e ação desabalada, tendo apenas um falso verniz de quebra-cabeça pseudo-intelectual para ajudar na conversinha de bar depois do cinema de sábado à noite. Afinal, era isso que Nolan fazia (pior, é verdade) em The Prestige (O Grande Truque) quando apelava para um enredo prolixo e obsessivo “que acabava dando mais atenção aos truques de efeito na tentativa de envolver a platéia ao escamotear tantas cartas escondidas na manga” (trecho de nossa resenha publicada neste site na época em que Truque foi lançado no Brasil). No novo filme, pelo menos, não há tantas cartas escondidas na manga o tempo todo para enganar a plateia; apenas aquelas que prenderão a atenção para vermos no que é que vai dar tanta correria em ações paralelas sonhadas.
Para o propósito de capturar o espectador existem ainda os recursos à moda de filmes de James Bond (troque-se o hotel no deserto de Quantum of Solace por uma construção na neve) e a intérpretes carismáticos como Marillon Cotillard (Piaf) e mesmo Di Caprio – em um personagem que ecoa bastante o que incorporou no recente Ilha do Medo (filme-decepção de Scorsese - extraído do livro-decepção de Dennis Lehane - ao cair no clichê que “explica” seu enredo insólito por produções mentais, sejam sonhos ou delírios).
Os demais personagens com algum “enredo” existencial são bem mais pobres (um jovem herdeiro e seu tio, vividos por Cillian Murphy e Tom Berenger) ou servem apenas à equipe na base de qualquer filme de roubo, sem maiores oportunidades para os atores. Já a personagem Ariadne faz muito como “arquiteta” (de cenários para sonhos), mas a atriz que a interpreta (?), Ellen Page, tem pouco a fazer - e mesmo assim o faz com a emoção de uma porta dando a impressão que não sabe nem mesmo caminhar em cena.
#A ORIGEM (INCEPTION)
EUA, 2010
Direção e Roteiro: CHRISTOPHER NOLAN
Fotografia: WALLY PFISTER
Edição: LEE SMITH
Direção de Arte: FRANK WALSH
Música: HANS ZIMMER
Elenco: LEONARD DI CAPRIO, MARILLON COTILLARD, JOSEPH GORDON-LEVITT, ELLEN PAGE, KEN WATANABE, CILLIAN MURPHY, TOM BERENGER, TOM HARDY, DILEEP RAO, LUKAS HAAS, MICHAEL CAINE, PETE POSTLETHWAITE.
Duração: 148 minutos
Site oficial:: http://inceptionmovie.warnerbros.com/