Texto revisto a partir do que foi publicado anteriormente durante a cobertura do Festival do Rio 2010
Pleno de referências cinematográficas, o novo filme de Arnaldo Jabor, depois de 23 anos sem dirigir, cai na armadilha de lembrar tantos bons momentos do cinema e ficar muito aquém de todos eles.
Além, de citar uma passagem de “Hamlet” (“exceto minha vida”), um diálogo de cena inteira de O Morro dos Ventos Uivantes (versão 1939, de William Wyler) é recitada pelos personagens dos pais de ‘Paulinho’ (provável alter ego - ficcional - do cineasta e roteirista, em sua infância e juventude). Além disso, a ‘mãe’ (Mariana Lima), canta We’ll meet again que encerrava Dr.Fantástico de Stanley Kubrick em 1964. E a moça que tira a roupa sem permitir que toquem em seu corpo, ameaçando o voyeur com o recurso de uma campainha para chamar seguranças, lembra por demais as cenas de Natalie Portman em Closer- Perto Demais (2004), de Mike Nichols .
Os cinéfilos talvez ainda possam detectar outras citações de filmes que foram, como os já lembrados, todos eles, muito mais bem sucedidos do que A Suprema Felicidade. Acima de tudo, a estrutura fragmentária do roteiro, com várias passagens isoladas que não terão obrigatoriamente continuidade (salvo no que diz respeito aos pais e especialmente ao ‘avô’ vivido por Marco Nanini) pode lembrar Amarcord de Federico Fellini, sendo que o próprio Jabor já declarou que vê este seu filme como “um ‘Amarcord’ brasileiro” (sic). Era melhor que não lembrasse tanto, nem que tal relação fosse enfatizada.
Toda a mescla de cenário histórico (como o fascismo que pontuava uma das maiores obras-primas de Fellini) ao lado de, principalmente, a recriação poética e oniróide da infância em Rímini, cidade natal do italiano, não se reproduz no Rio de Janeiro de Jabor nos anos 1940/1950. À exceção do final da II Guerra, não há outra menção como pano de fundo histórico – o que é uma opção do cineasta -, mas resta uma mistura mal sucedida de recriação cenográfica visando alguma verossimilhança ambiental com outros momentos “poéticos”, não necessariamente realistas ou naturalistas. Infelizmente, tanto em um sentido como em outro, tudo isso soa fake.
Até mesmo a auto-citação de momentos à moda de Nelson Rodrigues (de quem Jabor filmou Toda a Nudez será castigada e O Casamento) em cenas que envolvem prostitutas, agressões e sangue, surgem patéticas mas sem atingir o sublime grotesco rodrigueano que o próprio Jabor conseguiu retratar antes, especialmente em Toda a Nudez.... Também é patético o trecho bizarro vivido por Maria Flor em uma casa decadente, mesclando sexo e espiritismo como em um “A Vida como ela é”; e um outro exemplo deste calibre é quando o menino é cercado por uma família onde todos são cegos, menos a mãe que é vidente (que pode talvez se referir à cartomante de A Falecida, peça de Nelson levada às telas por Leon Hirzsman na mesma época em que Jabor também fazia parte do “Cinema Novo”).
Os diálogos muitas vezes são apenas ruins, e sacrificam os esforços de Mariana Lima, especialmente quando, depois de brigar com o marido (Dan Stulbach), volta-se para o filho (na fase de 8 anos) dizendo como seu pai seria um bom homem. A transição da briga para a intenção de preservar, submissamente, a imagem do pai para o filho é constrangedora.
Piores são as frases “filosóficas” do avô e sua “sabedoria” quase de “auto-ajuda” (“Nem tudo é inteiramente bom” e, mais adiante... “nem tudo é inteiramente ruim”). Marco Nanini faz o que pode, mas a matéria-prima é inteiramente ruim - até para este tarimbadíssimo ator, o único a sobrenadar o naufrágio geral.
Os traumas de uma educação religiosa católica e repressora, especialmente no terreno sexual, são encenados de forma concreta e estereotipada, e por mais que tais momentos possam até corresponder ao vivido de fato pelo cineasta (e por quem foi aluno de colégios católicos da época) sua encenação é mais ridícula do que o ridículo das admoestações dos padres-professores de então, resultando em uma “denúncia” de questões já por demais pisadas e repisadas, sem nenhum acréscimo criativo e/ou artístico (nem lembremos as cenas do menino ‘Guido’ em confronto com os padres em Fellini 8 ½ ou a confissão do rapazola em Amarcord, menos “raivosas” e mais críticas em sua ironia quase afetuosa para com o passado de culpas incutidas pela Igreja).
O mesmo ataque sem novidades a questões antiquadas se dá com a crítica implícita (ou explicitada em falas que não acreditam nas imagens) ao casamento com privilégio para o machismo que impedia a mulher de trabalhar fora. As atrizes jovens que interpretam as mulheres jovens que atraem o protagonista podem sugerir uma atração “edípica” na medida em que se revelam a ele em interpretações de standards do cancioneiro americano, tal como a mãe de ‘Paulinho’ se revela ao tentar expor seu aspecto menos “Amélia” constrangida pelo marido (militar). Mas estas sugestões vagas também não merecem desenvolvimento no roteiro. Por opção? Não importa, o resultado é sempre de uma incompletude insatisfatória.
O artificialismo de tantos momentos também se faz presente na cena estilizada de carnaval que pode sugerir uma tentativa de recriar/citar/aludir ao estilo de musical norte-americano clássico - ou talvez, involuntariamente ou não, a uma cópia cabocla dos tempos do cinema brasileiro da Vera Cruz ou mesmo das chanchadas, mas novamente o resultado soa mais estranho do que poético em meio a outras cenas de viés mais cru e pretensamente chocante. As angústias homossexuais centradas em um jovem amigo de ‘Paulinho’ aos 19 anos ficam mais soltas e incompletas do que “em aberto”, assim como outras tantas vertentes que o filme tenta contemplar em duas longas horas de duração. Infelizmente o resultado final é de muito esforço sem sucesso, chegando a causar constrangimento na plateia que vai se mostrando desconfortável com o que vê. Incluindo o desempenho do ator Jayme Matarazzo que faz o ´Paulinho" aos 19 anos com uma única expressão facial o tempo todo.
# A SUPREMA FELICIDADE
Brasil, 2010
Direção e Roteiro: ARNALDO JABOR
Fotografia: LAURO ESCOREL
Edição: LETÍCIA GIFFONI
Direção de Arte: TULÉ PEAKE
Música: CRISTÓVÃO BASTOS
Elenco: MARCO NANINI, DAN STULBACH, MARIANA LIMA, JAYME MATARAZZO
Duração: 125 minutos
Site oficial: http://www.asupremafelicidade.com.br