O filósofo alemão Walter Benjamin escreveu que a marca histórica das imagens não indica apenas que elas pertencem a uma determinada época: ela indica, sobretudo, que elas só se tornam legíveis em uma determinada época. Para Benjamin, esse momento corresponde a um ponto crítico, um instante onde “então” e “agora” (as formas transcendentais do passado e do presente) se encontram, e explodem em novos significados. Não seria exagero eleger Filme Socialismo, o mais recente trabalho do incansável e fundamental Jean-Luc Godard, como o ponto crítico da cultura contemporânea das imagens. Nem tudo que é visível, é legível, escreveu Benjamin. Da mesma maneira, nem tudo que é legível, é visível. Filme Socialismo está precisamente na fenda entre esses dois estados dialéticos. Tudo cabe nessa fissura; dela, Resnais fez brotar ervas daninhas (elas estão lá desde sempre, da abertura de Hiroshima, meu amor, até o mais recente trabalho, que as incorpora ao título); Truffaut, o primeiro leite derramado da infância; Von Trier, sangue e secreções. Godard tira dela imagens, com o fluxo e a fúria de um zapeador de TV por assinatura com 657 canais.
Filme Socialismo ensaia uma definição para a imagem a partir dos diversos sentidos que são a ela atribuídos: portadora de informação, mensageira, mediadora; instantânea, anacrônica, vigilante; clara, escura, silenciosa, ruidosa; signo, significado, significante. No limite, simplesmente uma imagem. E, como manda a tradição do ensaio, forma de cinema à qual Godard vem se dedicando nas últimas duas décadas, essa busca é feita de riscos, tentativas, incertezas, idas e vindas, caos e dúvida. E nos lança, à medida que o filme acontece aos nossos olhos, a seguinte pergunta: estaremos, nós e a enorme quantidade de imagens que produzimos, no lugar da morte da memória e da referência?
O filme começa em um transatlântico de luxo, onde acompanhamos as atividades dos passageiros, e termina na curiosa relação de uma família francesa com duas jornalistas interessadas em registrar depoimentos e imagens do cotidiano. Se em um primeiro momento a coisa parece não fazer sentido, não se preocupe, porque não faz mesmo. A lógica do ensaio é, por sua própria natureza, fragmentária, elementar, tecida artesanalmente, experimentando correspondências, vozes e montagens. E foi justamente no desenvolvimento de uma consciência de que a complexidade do mundo acontece a partir da organização de coisas simples (entre si), que Godard encontrou na forma do ensaio o seu eixo de trabalho.
Uma japonesa e seu marido alemão gozam de bons momentos dentro do cassino do navio, uma jovem russa existencialista proclama que não morrerá sem ver as palavras “felicidade” e “Russia” juntas novamente na mesma frase, o filósofo francês Alain Badiou faz uma conferência para uma platéia de cadeiras vazias, e a cantora Patti Smith, uma performance privada para a câmera dentro do camarote. Se Japão e Alemanha, ambos destruídos ao final da Segunda Guerra, se rendem ao templo do consumo e se deixam consumir pelas imagens de vigilância da câmera de segurança, talvez estejamos, de fato, no limiar da memória, ou de sua ausência. E, segundo Godard, estamos todos, literalmente, no mesmo barco.
Na escrita ensaística prevalecem “relações de vizinhança” entre conceitos, palavras e imagens em constante deslocamento. Diferente da narrativa clássica, onde a chave da montagem é a organização de planos em uma seqüência lógica, a narrativa ensaística é um tipo de composição discursiva construída, sobretudo, pela justaposição ou coordenação de elementos, em vez da sua subordinação. Longe de ser um exercício randômico, o ensaio é um método, e o filme de Godard é uma preciosidade ao formular esta encenação. O belo trabalho de som realça os contrastes entre a fluidez das águas (e da própria história) e o artificialismo da realidade em suspense de um cruzeiro turístico; a agilidade na edição dá conta da “impossibilidade de dar conta” a partir daquilo que nos chega através dos telejornais (as imagens, em Godard, são sempre menos para dar conta, que para “se dar conta”); a organização de imagens de forma não diegética (ou seja, desviada da narrativa clássica) nos obriga a pensar a realidade de cada plano como uma nota de pensamento, um rabisco de canto de página, uma folha solta em uma gaveta; a instrumentalização das legendas para além de uma mera função de tradução – fragmentadas, elas menos traduzem que dialogam com a poética da forma. Fragmentos, livros, quadros, notas, escritos, pensamento, filmes; imagens deslocadas de qualquer referencial fixo. E há, fundamentalmente, as crianças. O cinema de Godard é feito de uma curiosidade infinita, da surpresa no olhar e com a vitalidade do novo que existe nas primeiras descobertas. Paradas na imagem, closes, travellings, panorâmicas, luzes e focos: olhar objetivamente para descobrir a subjetividade do mundo, estes são seus ensaios.
“È justamente quando eu não sei, que eu mais quero falar”, disse Godard durante uma conversa com o jornalista Jean Narboni no documentário de Alain Fleischer Fragmentos de conversas com Jean-Luc Godard (2007). Talvez a escrita ensaística seja a única onde caiba o incômodo e o desconforto desse jovem senhor que em dezembro completa 80 anos. Talvez Godard só venha a ser totalmente compreendido em algum longínquo momento de nossa história. Filme Socialismo pode até resolver algumas angustias relativas ao processamento da imagem hoje. Mas a esfinge ainda permanece indecifrável...
FILM SOCIALISME (FILM SOCIALISME)
FRANÇA, SUIÇA, 2010
Direção: JEAN-LUC GODARD
Roteiro: JEAN-LUC GODARD
Fotografia: FABRICE ARAGNO E PAUL GRIVAS
Produção: RUTH WALDBURGER
Elenco: CATHERINE TANVIER, CHRISTIAN SINNIGER, JEAN-MARC STEHLÉ, ALAIN BADIOU, PATTI SMITH E OUTROS
Duração: 101 minutos
Site oficial: htt://www.filmsocialisme.com